quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Ludovico, Clarice e o amanhã


Ludovico tocava como se não houvesse amanhã. As notas ecoavam de um modo potente, inequívoco, de uma precisão rara. Os transeuntes estacionavam debaixo da marquise daquele antigo prédio, que remontava um período já perdido no tempo. No último andar, notas e mais notas. Harmonia ressoava e, de um modo misterioso, mas concreto, atingia os céus. A cafeteira e a xícara, postas na pequena mesa ao lado do piano, vibravam ao ritmo da música. Ludovico devaneava.

***

A festa transcorria de um modo sereno, pacato demais para uma comemoração daquele tamanho. Os mascarados podiam ser reconhecidos unicamente pela sua voz, estatura e pelos seus modos característicos de gesticular, de andar, de fumar. Ludovico pouco prestava atenção no público, apesar das pessoas de eminência social, política ou artística. Isso porque todo o seu ser estava voltado para Clarice, a jovem dama que arrebatava a todos com a sua solene e bela presença. De fato eram poucos os homens que ignoravam aquela mulher, de forma que ela era, de um modo discreto, o centro das atenções.
A música do piano revelava um coração triste. A canção não era triste por si mesma, mas pela sua densidade sensível. Compenetrado, o talentoso músico parecia dar tudo de si no tocar de teclas. A força da sua presença musical ditava o ritmo do baile, o que passou a incomodar alguns. Afinal de contas, era uma festa, não uma marcha fúnebre. Pausa na música. Alívio.

***

O sol entrava por uma nesga de luz na escuridão do quarto. Ludovico olhava para o corpo daquela mulher percebendo detalhes antes não vistos. Ela dormia de um modo especial e particularmente belo. A boca semiaberta, o seio suavemente caído para o lado direito de seu corpo, os pés envoltos nos seus. Os restos da ceia da noite anterior permaneciam na mesa. Uma garrafa de vinho tombada na mesa, cacos de uma taça espalhados pelo chão, a cadeira tombada e a mesa visivelmente fora de seu lugar. Parecia que a casa havia sido assolada por um tornado. De certa forma tal impressão não era equívoca.

***

Os passeios no parque costumavam ser tristes. Traziam de volta lembranças sorumbáticas de uma infância que gostaria de ter sido feita esquecida. Os braços dados, de um lado a leveza e firmeza e de outro a força e a insegurança, flutuavam pelos caminhos artisticamente construídos e engenhosamente pensados. Uma estátua de Ícaro ocupava o centro da pequena praça central. Ícaro mirava os céus e, decidido e solene, preparava seu voo final. Aquela estátua, paralisada no tempo, parecia não saber o destino trágico que o esperava e ficaria eternamente ali, mirando o infinito. Ludovico pensou que alguma alma piedosa o tivesse petrificado e pensava se aquela criatura mitológica desistiria de seu grandioso anseio caso soubesse o fim. Não valia a pena conjecturar sobre tais possibilidades. Afinal, seu céu era aquele presente, era aquela presença que docemente lhe oferecia a mão. Como estava no céu, ele evitava, a todo custo, pensar na queda.


***

O lugar cheirava cigarro e álcool. Escuro, sombrio e abandonado. A garrafa, posta ao alcance das mãos, não tinha um minuto sequer de repouso. A música era agressiva, de certa forma violenta. O homem das mãos que revelavam o divino havia caído no inferno. Uma foto em um porta-retratos permanecia posto em cima do piano, encarando-o gravemente. Sua música atormentada era para ela.

***

Sua música não era mais suave como fora um dia. Era pesada, densa e profunda. Fazia-se insuportável aos ouvidos de alguns e despertava lágrimas nos olhos de outros. As notas carregavam amargura pelos erros do passado e aguardavam outras notas, de outra música, não que desfizessem o já feito, mas que carregassem o perdão. Clarice estava sentada na primeira fileira, séria e atenta, como sempre. Parecia dar tudo de si na escuta da canção, num esforço titânico para compreender o coração do seu amado. Era o único meio de que dispunha. Tentaria até o fim.


***

O violino permanecia escorado na parede, no canto da despensa. Empoeirado e desafinado, esperava o dia em que seria novamente tocado, o dia em que abandonaria o desafino e a solidão. Clarice, algumas vezes, passava horas a fitá-lo, como se constantemente permeada por uma dúvida implacável. Ela também ansiava pelo dia em que voltaria a encarnar a música. Enquanto isso o piano continuaria soando em solidão, expiando, pouco a pouco, os pecados daquele que o tocava. Ludovico tocava na espera esperançosa de que haveria o amanhã.



segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Sobre chorar 2

Lá se vai um bom tempo que não passo por aqui. Um ano, talvez, pois a memória já encontra dificuldade para recordar certos fatos. O fato é que lá se vai muito tempo. Pergunto-me, ocasionalmente, o porquê disso, buscando insistentemente - e de um modo tipicamente meu - os “porquês” e as explicações causais de tudo. Faz-se necessário, acredito, começar do início: faltava-me inspiração. Entretanto, inspiração me parece termo de escritor que precisa produzir algo e, diante de questionamentos e críticas referentes à sua improdutividade, justifica-se pela falta de inspiração. Não tenho a obrigação de escrever e não vivo disso, então me parece errôneo justificar pela falta de inspiração. Nesse momento outro aspecto me vem à cabeça: parece-me que inspiração não é apenas uma “coisa” que se tem que nos legitima a escrever uma prosa ou uma poesia ou palavra qualquer: não posso limitar esse termo a esse uso (por mais bonito que seja). A inspiração pode se revelar em uma palavra a um amigo ou parente ou namorada; em um modo cuidadoso de arrumar o quarto; em um jeito diferente de abraçar quem quer que seja; em um jeito atencioso de brincar com uma criança; em mandar poesias e músicas a uma certa pessoa pelo simples fato de se lembrar dela; em um olhar cheio de maravilha para algo que é radicalmente belo; e – não para fechar a lista, mas apenas para pontuar algumas situações – manter firme a certeza da beleza dessa coisa misteriosa e, de certo modo, mágica, que é a vida em si mesma. Nesse ponto chego à conclusão que a inspiração eu não perdi. Percebo agora que o que me faltava era a urgência de escrever, aquele grito silencioso que vem do fundo da nossa alma e que exige, contra tudo e contra todos, a sua expressão por meio dessa dádiva que é a palavra.


Estes foram tempos em que me reencontrei com as lágrimas. Tinha me esquecido da minha capacidade de chorar e redescobri que a lágrima é forte. Forte não porque ela comove o outro (se bem que isso é um exemplo de força: a capacidade de fazer com que o outro se mova junto comigo, que ele “co-mova”), mas porque em certos momentos ela expressa um sentimento e uma experiência que palavra nenhuma é capaz de expressar de modo tão preciso e tão justo. Certas vezes estamos, de um modo inexplicável, em momentos de afinidade com as palavras, mas eu me encontrei em um momento de afinidade com a lágrima. Lembrei-me, finalmente, do gosto das minhas lágrimas; do peso delas; da capacidade transformadora que elas têm; da sua força expressiva. Hoje eu posso dizer que sou uma pessoa que chora e isso, de algum modo, dá-me a sensação de que estou mais próximo, vivencialmente falando, do humano. Hoje não é cisco e não é chuva: é choro mesmo. Da lágrima brotam infinitas palavras. Tem um pouco disso: aproximar-se do humano é se aproximar do infinito, de forma que hoje estou mais perto dele, ainda que infinitamente distante. Apesar de todas as perdas, infinitos ganhos. Ainda que menos íntimo da palavra escrita, sinto-me mais perto da palavra sentida: ganhei a lágrima sem perder a palavra. Gratidão.


quarta-feira, 18 de setembro de 2013

O som do coração


Sonoros retumbes timpânicos. Batuque, batida e bedelho. Toldo circense erguido para que ficássemos protegidos do intenso sol. Ainda assim, calor. O chão duro para repouso sentado avisava quando a posição se delongava e, antes inquietos, os meus olhos se fixavam nela. Quando ela iniciou, chão duro e calor, nada disso incomodou mais. Era sonho, beleza, harmonia, inspiração, doação. Assim, as notas, batidas e batuques se integravam e compunham a atmosfera, fundindo-se à terra e aos corações dos ali presentes. Uma moça, aderindo ao sonoro convite do lugar, dançava sua música interior que vibrava em consonância com a música que educada e calorosamente preenchia o ambiente. Invasão delicada, permitida e ansiada. A criança, mais afeita às realidades intrínsecas do ser, com sua cálida tendência a aderir à sabedoria, à flor, à música e à poesia, não podia deixar de se maravilhar com a beleza e a verdade transmutadas em som. Essa criança, conectada à música e ao mesmo tempo consigo mesma, seguia, ainda timidamente, o sentido do seu coração: avançava em direção ao palco, vagarosa e lentamente, voltando-se vez ou outra para trás para ter a certeza de que a mãe ali permanecia enquanto ela seguia adiante. Justo, pois a condição para a pessoa se lançar no mundo é saber que alguém permanece para ela. A mãe gesticulava para que voltasse, mas sorria como quem dissesse “vai menina, vai!”; a menina, percebendo não haver impasse real entre mãe e música, entre correspondência e coração, subiu no palco e dançou e cantou e ouviu e se maravilhou. Os bracinhos e cachinhos balançavam no ar em perfeita sintonia com tudo o que existia. E ali, naquele preciso momento de música, de dança e de menina, momento de unidade entre ser, verdade e mundo, a banda tocou a sua música e desse modo a verdade se fez som. O som do coração, quando toca alto, tem a potente capacidade de ressoar em todo outro coração humano que, ainda que outro, ainda que alter, vibra na mesma frequência. Silenciosamente ou não, todos ali, convidados pela menina que da forma mais pura e verdadeira disse “sim” e aderiu à beleza que reconhecia com a própria sensibilidade, tiveram ocasião de reconhecer e verificar o ritmo da música do coração. Se eu fecho o olho, a menina ainda dança e o seu ritmo me convida a retomar a canção do interior. Do som da banda que tocava o coração, florescia a música, a dança e a menina. Em momentos assim a vida se afirma enquanto evidência máxima de si mesma. Diante de tal presente, gratidão.


domingo, 23 de junho de 2013

Arevamirp ed oicóniuqe?


Esses dias que vivo são marcados pela dúvida, de forma que até mesmo a definição da estação do ano na qual estamos se torna objeto de difícil apreciação. O calendário me aponta, estranhamente, o início do inverno. Estariam os astros a zombar de nós e da nossa pequenez? Nossa ferramenta de orientação temporal me parece, hoje e agora, zombeteira. Dá vontade de rasgá-la. Dá vontade de xingar os astros e todos esses movimentos cósmicos, que, obedecendo às leis do universo, passamos a compreender. Deveria eu, antes de ir à manifestação, ter olhado o calendário e acreditado nos astros?

Contrariando a todos esses astros, algumas pessoas dizem que é primavera. Não digo que estão errados. Eu via, no meio da manifestação, à minha frente, um mar de gente até onde a vista alcançava. Às minhas costas, a mesma coisa. Minha visão perdera o alcance ou o mar de gente e a magnitude do movimento era realmente maior do que os limites perceptivos do homem? Todos avançavam, da vanguarda à retaguarda. Como eu não estava numa guerra – mas sim numa primavera que evidenciava, acima das cabeças dos milhares de manifestantes, um belo horizonte – esses termos me parecem, nesse momento, descabidos. Então cabe aqui uma reformulação: do início ao fim, as pessoas avançavam e, nos cartazes, bandeiras, tintas nos rostos, gestos, gritos e brados, instrumentos musicais, em todas essas coisas, carregavam e expressavam não apenas sua insatisfação diante de um sistema político – e talvez econômico – que não atende às pessoas e seus anseios de justiça, de bem, de amor, de verdade e de beleza: carregavam e expressavam, em cada centímetro avançado, a esperança de construir ou de encontrar um lugar melhor, mais justo, mas honesto e mais bonito.

Infelizmente a primavera não é feita apenas de flores. Algumas árvores e plantas, indo contra sua própria natureza, não oferecem flores ao mundo. Pode ser pela terra árida, pelo terreno agreste, pelo solo sem nutrientes ou por algum tipo de veneno, não se sabe bem ao certo. Mas elas não florescem. A existência perversa da planta, nesses casos, não dá conta de permitir que os botões metamorfoseiem-se, a partir do seu processo de abertura essencialmente constituinte, em flor. A árvore sem flor, reconhecendo a beleza daquilo que poderia ter se tornado, vira erva-daninha e, no meio da primavera, consome tanto a potência e a promessa dos botões quanto a beleza e vitalidade das flores que já desabrocharam. E a primavera, com esse tipo de planta, vai ficando menos colorida, mais fria e feia. Por causa dessas ervas-daninhas, aquele movimento inicial – que vem das exigências das pessoas pela justiça, pelo bem, pela verdade e pela beleza – se transforma em caos. Assim, a primavera esfria. Surge uma estação fria e caótica e triste. Um novo tempo em que, com seu vento gélido, despetala ou sopra para longe as jovens e belas flores de raízes ainda curtas e deixa apenas as flores mais velhas e mais enraizadas que, por serem poucas, não resistem à nocividade das invejosas e enraizadas ervas que se alimentam do solo fertilizado pela vida que ali antes se encontrava. Ao contrário do que predizem os astros, chega, depois da primavera, o inverno. Infiltrados e disfarçados de manifestantes pacíficos, jogam bombas caseiras na polícia que, apesar de poder revidar com menos truculência e com mais eficiência, não o faz. Desarticulam o movimento incipiente e que, justamente por engatinhar, ainda não sabe muito bem como lidar com esse tipo de gente. O cenário pacífico dá lugar a um ambiente de guerra e, nesse momento, termos como vanguarda e retaguarda não podem mais ser considerados descabidos. Contrariando os astros e sua inerente ordem universal, à primavera sucedeu o inverno.

No meio da bagunça, o alcance da minha visão realmente se encontrava reduzido: não sabia bem o que acontecia e podia cair na armadilha de aderir a falso e manhoso partido. Reconhecendo os limites da minha visão, resolvi não tomar partido, não endossar os xingamentos direcionados à polícia e a ficar apenas com as reivindicações legítimas – e, infelizmente, genéricas – por melhor educação e saúde e pelo fim da corrupção e da violência. Dentro das minhas imensas limitações, não podia fazer muito. Contudo, timidamente, o alcance das vistas vai se ampliando e algumas coisas que não faziam sentido passam a fazer. O relato do que os outros viveram, ao mesmo tempo em que nos confunde, pode esclarecer. A confusão de depoimentos e versões, de opiniões e relatos, esse caráter obnubilado do que acontece, por si mesmo, não deixa de esclarecer algumas coisas e de dizer do que acontece nesses dias de hoje. Diz que a grande maioria não sabe o que acontece; diz que temos que agir com cautela antes de nos afiliarmos a qualquer ideologia ou partido ou reivindicação; diz da necessidade de visão crítica acerca do nosso tempo; diz da necessidade de educação para nós, brasileiros, que ainda engatinhamos nesse quesito; diz, por fim, que o critério para reconhecer a verdade está em nós e que a dúvida pode decorrer de uma atitude de não atentar para a própria experiência.

Quero acreditar que os astros e seus movimentos previsíveis e calculáveis não determinam o mundo dos homens e seus destinos. Quero acreditar que as flores, dançando e bailando ao vento, voltarão a repousar sob a terra consumida pelo caos e pela tristeza e trarão, novamente, vida, promessa, agência e esperança. Enfim, quero acreditar no equinócio de primavera.


Rafael de Paula


quarta-feira, 17 de abril de 2013

Folhas secas e o roubo do amanhã



“E depois de tudo, céu e terra aí estão, como se nada tivesse acontecido. A vida e as ações do homem têm o peso de uma folha seca numa ventania”. Li esse trecho, certa vez, em um livrão grande e grosso que eu ganhei dos meus pais na época em que eles acreditavam que eu era um leitor fervoroso e que eu ia ser escritor, tudo isso simplesmente por não terem referência alguma da leitura e escrita dos outros jovens da minha idade. Apesar de não ter tanta certeza da fidedignidade da transcrição deste trecho, estou certo de que o significado que ficou para mim foi esse e que ele foi meu objeto de reflexão durante vários anos - não constante, obviamente. Assim, pouco importa que a frase realmente não seja essa: a frase que tenho na minha cabeça me impressionou. Acho-a de uma estética privilegiada e causadora de um impacto imediato. O autor jogou na minha cara que minha vida não tem peso nenhum; jogou-me na cara que tudo o que fiz, faço e farei não vai valer absolutamente nada. Ainda assim, achava-a bonita, porque me fazia lembrar a minha pequenez e não deixava que a humildade fugisse para longe e me abandonasse por completo. Com o tempo, fui levantando hipóteses de que nossas ações têm peso sim, afinal, como fizeram algumas pessoas para registrar seu nome nos livros de história? Para o bem ou para o mal, polêmicas ou não, certas ou erradas, as pessoas fizeram coisas que marcaram a humanidade, que mudaram o nosso mundo, e estas estão imortalizadas nas páginas da nossa história. Então, mudei o foco da questão para mim: qual o peso das minhas ações no lugar onde eu vivo?  Resolvi, inspirado por alguns filmes e desenhos que assistia, que se eu pudesse proteger quem estivesse ao meu redor, respeitando as minhas capacidades e possibilidades, eu já estaria fazendo muito. Singela filosofia de vida que havia me tocado verdadeiramente. Eu, na minha pequenez, poderia fazer alguma diferença nas vidas de alguns. O tempo passou e fui percebendo o desafio que era estar, de fato, junto do outro e ser, efetivamente, uma presença nas vidas das pessoas, ainda que muito poucas. Eu, que, reconhecendo minhas limitações, havia reduzido o horizonte para tornar mais palpável minha tarefa, me frustrei quando percebi que ainda assim a minha dificuldade era imensa. Se não posso ser presença em casa, se não posso ajudar em um contexto específico, se não posso proteger muitas das pessoas que estão ao meu lado, então não posso fazer nada. Por fim, quando tomei consciência das minhas limitações e aceitei as regras do jogo, a angústia saiu de mim: não posso estar em dois lugares ao mesmo tempo, não posso cuidar de todos ao mesmo tempo, por vezes não sou capaz de cuidar de nenhuma pessoa sequer e, se não consigo cuidar de mim, sou absolutamente incapaz de cuidar do outro. A palavra cuidar é, para mim, hoje, deveras importante. Na universidade, redescobri o valor e a força desta palavra e parei de proferi-la aleatoriamente, em qualquer contexto ou situação, de forma casual e descompromissada. Aprendi que ela é uma palavra preciosa porque aprendi o valor e a importância de cuidar de alguém, ainda que seja uma única pessoa. Redescobri minha antiga filosofia de vida, aquela mesmo de cuidar e proteger quem estiver ao meu redor de acordo com minhas possibilidades. Redescobri a força deste ato e a potência de uma pessoa que é uma presença verdadeira e preocupada e atenta. É só reconhecendo as minhas limitações que eu consigo estar disponível para o outro.

Contudo, de vez em quando, alguns acontecimentos abalam nossas bases. E quando a vida joga na sua cara que você é fraco mesmo, que você não tem controle sobre nada? Sabe aquelas coisas que parecem estuprar a vida? Elas acontecem. Sabe quando você mata uma aula para fazer algo que, caso você tivesse se organizado melhor, você não precisaria fazê-lo naquele horário, depois escuta dos amigos que a aula foi bacana, foi bonita, que o professor estava com uma cara muito boa apesar dos sérios problemas de saúde e, no dia seguinte, você descobre que o professor morreu? Então, foi bem por aí. Mal o conhecia. O que me abala é o roubo do amanhã. Deixei para ir à aula semana que vem, mas a “semana que vem” não existe mais. Não temos controle sobre nada, ou quase nada, e nesses momentos nos damos conta que realmente somos folhas secas na ventania. Dizem-me: como poderia saber que ele faleceria? Digo-lhes: não poderia saber e, mais ainda, não consigo viver cada momento como se fosse o último. O mais perto que posso chegar disso é reconhecer os momentos importantes e tentar agarrá-los no presente. Hoje a vida me deu uma cutucada e a realidade se mostrou inexorável. Foi um aviso da realidade para eu cuidar e para eu tomar o cuidado de reconhecer, hoje e aqui, o que me é importante antes que isso me seja roubado. Que pelo menos me seja roubado um futuro de um presente que eu vivi, não o futuro de um presente que eu deixei de viver e que reconheci tardiamente. O amanhã nos será roubado, invariavelmente, porque a realidade é sempre maior do que nós e está sempre fora do nosso controle. A grande questão é aprender a ser folha seca: temos que saber reconhecer e viver o que reconhecemos como importante e, assim, dançar nosso próprio ritmo dentro da ventania que inevitavelmente nos carrega. Porque a tempestade chega e, de forma implacável, rouba de nós o amanhã. Para sempre.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Apologia ao amor

Fiquei chocado quando, na quarta feira de cinzas, vi uma foto no Facebook , tirada no carnaval de Diamantina, de uma faixa com os seguintes caracteres: “Foda-se o amor”. Imediatamente fui verificar o ibope daquilo e vi um número assombroso de pessoas “curtindo” e, em comentários, concordando com os dizeres da faixa. Eu pensei: “Que coisa doida!”. “Foda-se o amor”. Essa frase criou raízes no meu pensamento nesses dias, martelando na minha cabeça e confundindo o tico e o teco, que não tem se entendido muito bem e já não andam lá muito bons das pernas nesses últimos tempos.

Então, o que seria esse amor que essas pessoas estão mandando às favas? Não posso acreditar que estão dispensando o amor do gesto amigo, da palavra de consolo, do abraço forte e terno, do beijo no rosto ou do beijo apaixonado. Acaso estão eles a renegar o amor que enxuga as lágrimas, que oferece o ombro, que deixa a gente com saudade, que se entende com um olhar, que se entende com mil palavras, que dá aquele sorriso bonito e largo ou até aquele meio tímido e desajeitado justamente por possuir tanto fogo e ardor? Abdicam daquele que dá flor, que dá presente, que dá carta, que dá bilhete, que dá poesia, que dá cor? Não faz sentido descartar isso. Não faz. Eles renegam outro amor, ou outra parte desse mesmo amor.

Renato Russo, certa vez, disse que “se o amor é verdadeiro não existe sofrimento”. Poeta, letrista, brilhante. Mas este é um dos raros momentos em que discordo de alguma frase deste grande gênio da música brasileira: amor de verdade faz sofrer sim, faz a gente ficar triste, faz a gente chorar, faz a gente se desiludir, faz a gente não querer sair de casa, faz a gente não querer mais amar por algum tempo. É ferida que dói e se sente intensamente. Vinícius, o poeta, juntamente com seu violão, já dizia que o amor “é o espinho que não se vê em cada flor; é a vida quando chega sangrando aberta em pétalas de amor”. Suspeito que, quando escravo da alegria, Toquinho disse que o amor “me dá medo e vem me encorajar/ fatalmente me fará sofrer”. Cartola, de peito vazio, disfarçou e chorou por amor e disse que não se aprende a sofrer no amor, mas o sofrimento existe. Adoniran Barbosa deu bom dia à tristeza e pediu seu ombro para chorar, para chorar de tristeza de amar.

Essa gente triste que mandou o amor àquele lugar, mandou apenas uma parte do amor embora: a parte do amor que faz sofrer, do amor que faz a gente ficar triste e que faz a gente chorar. Ao pegarem a bela flor, assustam-se com o espinho que nela não se via e assim desistem de amar. Jogam fora a flor por causa do espinho antes invisível. Como não tem jeito de tirar só a parte ruim, jogam fora o amor por inteiro. O que fica é o amor de ilusão, o amor dos romances românticos, o amor que na verdade não é o amor inteiro e, por isso, não é amor. Tudo que deixa de ser inteiro, deixa de ser. Uma vez me disseram assim: “a gente tende a evitar o sofrimento, mas talvez eu tenha que sofrer mesmo não é?”. Concordei veementemente, apesar de meus gestos não terem expressado, naquela ocasião, o quanto aquilo me parecia importante. Ao afastarem a dor, o sofrimento, inevitavelmente afastam o amor.


O que eu vejo é gente que, de tanto querer ser amada, desistiu do amor. Querem o amor com tanta força, com tanta vontade, com tanta paixão, que se assustam com o espinho. Essa gente que diz “Foda-se o amor”, na verdade, são aqueles que mais querem amar. É a gente que muito quer o amor, carnavalesca e desesperadamente.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

De areia



Sem perceber, Pierre Menot fazia o movimento contrário. Quando olhava para a cachaça, via nela todas as suas angústias, sofrimentos, arrependimentos e tristezas; num único gole, queria botar tudo isso para dentro de novo, para ninguém mais ver e saber o tanto que sofria. Afinal, a dor era só sua e ninguém tinha o direito de vê-la e julgá-la, de reconhecê-la, de se compadecer ou dela zombar. Não era justo. Como era dor demais, o álcool não podia deixar de ser proporcional e um gole estava longe de bastar. Um para a angústia, três para a tristeza, mais três para o arrependimento e um último ao pai, que sempre o havia alertado; duas cervejas para a tristeza de hoje e seis para a de sempre; um olho roxo e um lábio sangrando para a culpa e necessidade de autopunição – ainda que indiretamente auxiliada; cinco cigarros para rever a vida, uma vez em cada um e, em cada, uma vida diferente, ainda que sempre triste, e outro cigarro para flertar, fingindo que ainda se importava; um trago de enrolado de Cannabis sativa para cavar o poço, que ainda não era fundo o suficiente. Se todos ali no bar fossem atletas, seu porre seria considerado olímpico. Depois da bagunça, dos golpes e do tombo, silêncio, sucedido por um burburinho, uma sirene, algumas pessoas de roupas brancas que corriam e faziam tudo muito rápido, mas sem pressa, e, no fim, alguns comentários perniciosos de gente da mesma estirpe que, para não admitir sua própria fraqueza de espírito, se julgava superior. Estavam todos não no mesmo barco, mas em barcos igualmente furados, afundando-se, isoladamente, em suas tristezas particulares.

...

Estava tudo branco demais. Havia um ruído eletrônico que, de alguma forma, representava sua freqüência cardíaca. “É melhor você se tratar”, diziam alguns jalecos brancos que por ele passavam. Quem essa gente pensa que é?

...

A claridade era insuportável, tal como o barulho. Centenas de pistões lançando gasolinas em bombas, movimentando rodas borrachudamente queimadas, produziam uma poluição plural. Alguns se zangavam com os encontrões que não podia evitar, enquanto outros chegavam a se preocupar, sem, contudo, deixarem de andar. A rua estava suja de fuligem, borracha e sola de sapato. A pressa para chegar a algum lugar deixa um rastro perceptível. No caminho, as quadras pareceram montanhas, mas finalmente estava diante do interfone, da porta e da lembrança das chaves. O porteiro cedeu uma chave e um assentimento discreto foi tudo que pôde fazer. Já era a quarta em menos de um ano.

...

O cheiro de poeira estava em todo canto. Na verdade, não era bem de poeira: era cheiro de solidão, que é muito mais forte e facilmente identificável. Cama, criado, armário, mesa e duas cadeiras, um sofá de três lugares e uma poltrona, televisão e rádio, oito copos, fogão, um prato de louça e um de alumínio, geladeira, três garfos e duas facas, pia e tanque. Longe de ser simples, era uma casa abandonada, em uso. No sofá, deitou e descansou pela primeira vez em dois dias. O sol incomodava, mas as forças lhe faltavam e as persianas continuaram abertas. Dormiu um sono quente e sudoríparo, assaz agitado, com imagens do que tinha e não tinha sido. Normalmente era o contrário, mas, naquele momento, as imagens do que tinha sido doíam muito mais.

A maldita velha já batia à porta. “Não vou abrir”, era o que pensava. As batidas continuaram de forma insistente, incansáveis, e o seu coração, que já batia cansado, não podendo suportar tanto vigor, fez o corpo abrir a porta, numa rara injeção de ânimo. “Bom dia o inferno!”, pensou. “Fome, não tenho”, disse. “Está meio sujo, mas se insiste...”, resignou-se. A companhia, contudo, não era ruim, como demonstrava a reação inicial: era a companhia mais agradável possível: uma mulher simpática, não velha, como ele sempre insistia em pensar, afável, preocupada, inteligente ao seu modo e, também ao seu modo, feliz. Era também bonita, mas quando os olhos estão fechados, a beleza não aparece. O grande problema da mulher era sua capacidade de enxergar o coração e isso era insuportável para ele. Ela o lia como um livro infantil e o interpretava como gente grande. Era esse seu grande defeito. Quem ela pensa que é?

Horas se passaram em conversas e assuntos que mudavam e que se desenvolviam de modo já habitual. Chegaram ao ponto de sempre e a carranca do homem apareceu, como sempre. Não era a felicidade que ele havia tido e desperdiçado ou deixado de buscar. Não era isso. Era a felicidade que ele lutou e que, por ele não poder controlar tudo e por ser pequeno como todo mundo é, não dependia apenas dele. Era isso que ele precisava entender, mas não queria, não podia. Anos e anos construindo um castelo de areia, lindo, imenso, perfeito, mas de areia; e o vento soprou, como sempre fez e sempre haveria de fazer. Reconhecer a fragilidade do seu construto, da obra de sua vida, era difícil. Estava perdido não nas ruínas, porque castelos de areia, quando desabam, não geram escombros. Estava preso no deserto que havia criado com a destruição da sua vida. De vez em quando até via o mar, porque a maré sempre sobe, mas tinha medo de construir uma ponte de areia, a única que sabia fazer. E por isso não fez mais nada. Como até a areia se cansa de ficar parada, ela se torna movediça. O perigo estava aí.

E essa gente, de casa de tijolo e cimento, quem eles pensam que são?