segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Sobre o cotidiano


Hoje eu ajudei um menino muito pobre a comprar um biscoito. Estava eu no supermercado e eis que surge um garoto, com não mais do que nove ou dez anos, que me perguntou, com certa impaciência e inquietude: “Onde que tem ‘ualfer’”. Interiormente, perguntei-me que “merda” era aquela. Mesmo depois de um esforço considerável para decifrar aquelas palavras, continuei sem entender o que ele queria e não pude segurar um vigoroso “quê?”. De novo, ele me respondeu: “Quero um ‘ualfer’!”. Felizmente, tive um insight e percebi que aquele pequeno garoto maltrapilho, sujo e pobre queria um biscoito waffer! Ora, já que havíamos nos entendido, levei-o até as prateleiras onde estavam os biscoitos. Missão cumprida, voltei e peguei o carrinho. Subitamente, fui invadido por uma vontade quase incontrolável de comer chocolate e, coincidentemente, as prateleiras de chocolate e biscoitos eram próximas. Quando cheguei lá vi o garoto olhando cuidadosamente os biscoitos. Virei-me para ele e mostrei aonde poderia achar os biscoitos waffer, de forma que ele logo me respondeu: “Eu sei, mas não tenho dinheiro”, e estendeu a mãozinha suja de sei-lá-o-quê com uma moeda de um real. A euforia que antes tomava conta da alma daquele menino deu lugar a uma tristeza e decepção visíveis em seu rosto muito novo, mas sofrido. Enternecido, olhei o preço do biscoito que ele tanto queria e vi que faltavam vinte centavos de real para que ele pudesse adquirir aquele bem tão querido. “Cavuquei” meus bolsos, encontrei algumas moedas, dei-lhe os vinte centavos e disse-lhe que agora ele poderia comprar o tal biscoito. Ele, de imediato, disse: “Mas só?”. Pensei em defenestrá-lo, dar-lhe um pontapé que o fizesse rodopiar no ar, dar-lhe um mata leão, fazer cócegas até que ele pedisse “penico”, amarrá-lo de cabeça para baixo numa árvore ou colocá-lo no alto da prateleira mais alta (eu alcançava, eu juro!), mas optei por mostrar quais outros biscoitos ele poderia comprar. O garoto escolheu um biscoito e perguntou-me: “quanto é?”. Eu disse que era um real e dez centavos. O garoto, eufórico, pegou o biscoito e saiu correndo, gritando: “E ainda ‘sobrô’ dez centavos!”. Diante de tamanha felicidade, conferi se o preço do biscoito era realmente o que eu lhe havia falado. Para meu alívio, eu vi o preço certo.

Hoje escutei minha vó contando sua vida. Depois do supermercado, cheguei em casa e fui lanchar. Tímida, encurvada, com aquele olhar de criança quando quer algo, minha vó, lenta e ruidosamente, sentou-se ao meu lado. Claro que ela queria falar alguma coisa. “’Tô’ meio cansada, ‘fio’. Você sabia que eu não tenho um dos pulmões?”. Dessa pequena frase desenrolou-se uma história que foi desde o seu pneumotórax mal-tratado em São Paulo na década de 40 até as simulações de blackout na época da Segunda Guerra Mundial. Falou-me dos navios brasileiros afundados pelos submarinos alemães e da morte de Tancredo Neves. “Mas você não pode sair na rua falando que mataram o Tancredo! E muito menos o Getúlio! Pode dar problema!”. Depois de me ter feito jurar de pés juntos que não sairia falando isso para qualquer um, ela prosseguiu. “Foi esse pneumotórax que me fez conhecer seu avô. Eu 'tava' muito doente em São Paulo e eles não cuidavam de mim, daí os médicos me arrumaram um salvo-conduto – era época de guerra, meu ‘fio’ – e eu pude voltar pra cá! Foi a minha sorte!”. Coincidência ou destino, não importando por quais caminhos o destino tenha passado, quem ajudou minha vó foi meu vô. “E deu casamento”. Depois das duas horas que fiquei escutando uma pequena parte da sua longa e sofrida vida, ela disse: “’Brigado’ pelo desabafo! ‘Fio’, já te ensinei esse jogo?”. Claro, milhões de vezes. E até o menino que eu encontrei no supermercado aprenderia e nunca mais se esqueceria. “Não vó, você nunca me ensinou. Como que é?”.

Hoje tive um dia igual a todos os outros, mas diferente. Contei apenas duas das muitas coisas que me aconteceram hoje. Quantas vezes garotos pobres e sujos passam na nossa frente sem que lhes demos a menor atenção? Quantas vezes minha avó me veio me contar as histórias da sua vida – ainda que nunca havia me falado que não tinha um dos pulmões? Várias. Hoje, específica e especialmente, atentei para esses pequenos fatos tão comuns no cotidiano de qualquer pessoa. De tão corriqueiros, não damos tanta importância a eles e, por isso, passam batido. Mas em alguns momentos temos que parar e refletir sobre o nosso cotidiano. O despertar, as aulas, o trabalho, são sempre - ou quase - iguais. O que muda é a forma como vemos todas essas coisas que nos acontecem. Ou falta tempo, ou falta serenidade, ou falta sabedoria, ou falta disposição, ou talvez faltem todos eles, nos casos mais infelizes. Ou talvez, não seja nada disso (desculpem-me a contradição). Pode ser apenas nosso olhar carregado de emoção e sentimento que dá uma nova cara a tudo aquilo que é comum e simples. Porque nosso olhar se enche dessas coisas que chamei de emoção e sentimento, que permitem um olhar mais apurado e perpicaz (ou quem sabe distorcido) da realidade? Não sei. E tanto emoção quanto sentimento não se explicam; se tivessem explicação, seriam razão, e é justamente a razão que nos faz ver tudo da mesma forma. E hoje eu vi um pivete de uma forma diferente. Hoje escutei minha vó de uma forma diferente. Hoje, meu dia foi mais pleno e completo. Hoje, o tal do cotidiano foi diferente. Hoje.

Rafael de Paula