domingo, 26 de junho de 2011

À procura do eu (des)conhecido


Parte III – A descoberta do desencontro


Estava já à porta do primeiro possível comprador. Atendeu-lhe à campainha uma senhora que já chegava aos setenta anos. “Bom dia, estou aqui a lhe oferecer bíblias, ilustradas ou não, encapadas ou não. Há para todos os gostos!”. “Já tenho cá algumas destas. Não preciso de mais, mas, mesmo assim, obrigado!”. E a porta foi fechada, sem que o vendedor tivesse tempo de insistir um pouco mais. O trabalho de vendedor de bíblias é árduo, visto que nem todos são cristãos, as pessoas não compram tais livros todos os dias e, ainda, se incomodam com qualquer tipo de insistência. Além disso, é preciso ter tato e talento para vender, coisa que não se consegue quando se vende o que não se acredita. Por isso talvez tenha sido má ideia começar a vender bíblias: faltava-lhe a convicção e o brilho nos olhos pertencentes aos crédulos, às crianças, aos sonhadores e aos idealistas, que eram percebidas – ou a ausência destas –, conscientemente ou não, por aqueles que eram abordados. Um vendedor de sonhos, que realmente acreditasse nos seus sonhos, teria mais sorte do que o nosso pobre personagem em seu empreendimento. Mas enquanto não percebia esta coisa tão evidente, continuava a tentar. Segunda porta e segunda recusa. “Tudo bem, não foge ao que estamos nós, vendedores, acostumados a receber”. “Não percebe que isso tem tudo para acabar mal?”. Agora quem falava era a sombra, quase esquecida pelo sujeito que estava a se preocupar apenas com sua tarefa. “De onde veio tal ideia de vender estes livros, pobre infeliz?”. “Ainda está aí a me observar, sombra? De qualquer forma, veio de um padre, que certa vez me disse para espalhar a palavra de Deus. É isso que estou fazendo, à minha maneira, claro”. “Que língua afiada você tem! De qualquer modo, não sei nada de padres, igrejas ou bíblias. Sei é que isto não presta”. “Então o que sugere?”. “Quanto ao que fazer depois de largar tais livros, não tenho sugestão alguma. Por ora, apenas lhe digo para largar tal ofício. O que tem de você nele?”. Realmente não havia nada. Não tolerava insistentes, vendedores e padres. Na verdade, não havia nada dele em tudo que fazia e, em seus contatos com o mundo, privava os outros homens de captarem a sua própria essência. Privava a si mesmo e ao outro da lei natural dos encontros, donde damos e recebemos um tanto. Não dava nem recebia nada simplesmente por não ser ele mesmo e não se colocar e nem se ver em seus atos. Ora, privava-se de sua própria humanidade e, por conseguinte, tornava os outros menos humanos, ou melhor, menos potencialmente humanos.

sábado, 25 de junho de 2011

À procura do eu (des)conhecido



Parte II - Descrença


“Por certo ainda estou a dormir. Donde já se viu uma sombra que fala?”. Esbofeteou-se no intuito de despertar, mas, ao abrir os olhos, percebeu que não dormia – estranhos são esses momentos em que não sabemos se estamos nós a sonhar ou a viver a realidade, ocasiões estas que nos deixam perplexos, confusos, fazendo-nos questionar ainda mais nosso julgamento de realidade. Por conseguinte, nesses momentos que se sucedem, compreendemos um pouco mais aqueles filósofos que se ocupavam da epistemologia que, amiúde, tanto criticamos por terem se voltado às questões menos importantes. Mas voltemos à nossa história, pois nosso homem, agora, encontra-se, mais do que nunca, sozinho no apartamento, desamparado, visto que nem mesmo eu, que o criei, dou-lhe a devida atenção. Agora podemos encontrá-lo a se indagar se está a ficar doido. “Se não estou a dormir, só posso estar louco!”. Enquanto isso, tinha a nítida impressão de que a sombra o olhava fixamente, como a desafiá-lo, ainda que esta não tivesse olhos ou coisa parecida. Incomodado, teve a brilhante ideia de fechar as cortinas. “Sem luz, não há sombra. Sem sombra, não há loucura, ou o que quer que seja”. Mal sabia o homem que a penumbra não era suficiente para livrar-lhe de seu tormento. Nesses casos, somente a escuridão total pode nos salvar, mas, mesmo assim, há o risco de nela se perder. Por algum motivo, a vida sempre nos impõe riscos maiores ou menores, ainda que os evitemos a todo custo. “Acha que pode se livrar de mim assim, tão fácil? De mim não pode fugir, como faz em todas as ocasiões de sua vida e com todas as pessoas que se lhe apresentam. Estarei sempre junto de você, a não ser que deixes de existir. Quer deixar de existir?”. Talvez quisesse, mas esta não era ocasião de dar espaço a tais pensamentos. “Anda, é hora de vender suas tralhas”. O homem, completamente esquecido de seus afazeres e obrigações, lembrou que, naquele dia, tinha de fazer algumas vendas. Por falta de oportunidade, não pude mencionar que nosso ilustre personagem é vendedor de bíblias, ainda que se considerasse ateu. Então, por que não pensar que sua atuação, por essência, era desonesta e, quiçá, vil? Nós, enquanto seres humanos, só temos o direito de oferecer ao outro aquilo que cremos, sejam objetos materiais ou mesmo opiniões. Caso contrário, o que fazemos é enganar os outros com um propósito qualquer, seja ele considerado bom ou mau, mas que, por assim ser, já carece da honestidade, da verdade e do respeito que movem os bons. Voltemos à nossa história, pois enquanto estávamos a refletir sobre essas coisas o homem já se punha a caminho da rua, já banhado, penteado, vestido e, ainda, assustado.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

À procura do eu (des)conhecido



Parte I – A sombra

O despertador tocou alto, incômodo. Na verdade, o que mais atormentava naquela cena era a impassibilidade do sujeito deitado na cama diante de ruídos tão escandalosos. Pausa. O cenário fica mais leve sem o toque do maldito relógio. Era como se tudo aquilo que ali estava, imóvel, fossem eles seres animados ou inanimados, aproveitassem essa calmaria de momento. Afinal, a calmaria nada mais é do que o prenúncio da tempestade. Dito e feito. Recomeça o toque do despertador. Como antes, nenhuma reação do indivíduo deitado. Estaria ele a passar bem? Não há cansaço normal que explique tamanha apatia diante dos irritantes barulhos de um despertador. Pessoa normal, por mais fatigada que estivesse, tomaria alguma atitude. Talvez - por que não poderíamos nós inferir coisas sobre a personalidade de alguém tomando em conta apenas uma impressão momentânea? – o homem que ali vivia fosse assim diante da maioria das situações que se lhe apresentam na vida. Mas são apenas hipóteses. Então, por ora, abandonemo-las. Cessa o despertador. Pelas contas da vizinha de cima, do quinto andar, falta, ainda, um recomeço de despertador, até que cesse, automaticamente, pela última vez nessa manhã, desistindo de levantar aquele moribundo da cama.

As nuvens que cobriam o céu, seja lá por ação do vento ou mesmo por desígnios divinos – de um Deus que não mais aguentava o estado pachorrento no qual se encontravam alguns dos seres que certa vez criara com tanto esmero, à sua imagem e semelhança - deram passagem aos raios de sol que, impiedosos, alcançaram a janela do homem e terminaram por acertar em cheio a cara do sujeito. Ainda assim, nada. “Acorda, traste!”, disse uma voz. Pego de surpresa, o vagabundo, que já estava acordado desde que o despertador tocou pela primeira vez, mas que por indolência não reagiu, levantou-se, assustado. “É contigo que falo, malandro! Veja lá se isso são horas de continuar deitado!”. Depois da segunda fala não havia dúvidas de que alguém se infiltrara em sua casa enquanto dormia e, agora – porque agora? –, vinha falar-lhe. “Quem é? Apareça de uma vez, quem quer que seja! Olha que chamo a polícia!”. “Chama então, e passe por um tolo. É óbvio que a polícia não encontrará ninguém”. Acuado, o homem tateava a escrivaninha, ainda que também estivesse a buscar com os olhos o intruso que lhe dirigia as palavras, procurando algo que fosse útil caso fosse preciso reagir. Tudo que encontrou foram umas tantas canetas. Mas sem dúvida, numa peleja, são melhores as mãos nuas à uma caneta; e parece que pensamento similar lhe ocorreu, visto que tocou a caneta e logo a abandonou, sem deixar de mostrar certa desolação misturada ao medo diante de um alguém que não via e não sentia, mas só escutava. “Não pode me tocar e nem me ferir. Olha para baixo e vai me encontrar”. Olhou para baixo e, diante das janelas de seu apartamento, via que quem lhe falava era nada – ou ninguém, visto que, por estarmos no início da história, ainda não sabemos se seria melhor designar aquilo como coisa ou como gente – menos que sua sombra.