sábado, 30 de julho de 2011

À procura do eu (des)conhecido


Parte VI – A busca

“Mas e agora, que fazer?”. Foi só isso que o homem pôde fazer ao se deparar com o destino, tanto o destino presente, resultado tanto dos destinos passados que já se concretizaram e hão de afetar o futuro quanto da iminência dos destinos que pertencem ao que há de vir – já que a possibilidade futura já afeta o presente somente pelo existir do ‘talvez’ –, quanto com o destino futuro, resultado dos passados e presentes. Mas todos esses tempos, no fim – se é que se pode falar em fim quando falamos em destino –, conformam um único destino. Por integrar, indiscriminadamente, passado, presente e futuro, tempos que se afetam mutuamente, não seria errado dizer que o destino é atemporal, pois não pertence a nenhum deles e está, inegável e imprescindivelmente, constituindo e ligando todos eles. São tempos que se mesclam, dependem entre si; fatos que ocorreram, ocorrem e que estão por ocorrer que se ligam e se ligaram por obra do destino. A ideia do destino como uma categoria mais básica que o próprio tempo, como seu constituinte e, por que não, sua matéria prima e estrutura fundamental, pelo menos nesse contexto não se revela de todo errônea.

“Pergunta errada, imbecil! Não se chega a lugar algum se perguntando, simplesmente, o que fazer. Não vê que há algo anterior a tudo isso?”. “Quem sou eu?”. Esta sim é a pergunta certa. Por que não poderíamos arriscar dizer que a resposta a essa pergunta seja a própria busca dessa resposta? A pergunta, que leva à busca da resposta, passa a ser a resposta à própria pergunta. O caminho da busca do conhecimento de si enquanto ser humano nos leva a construir quem somos e nos leva a saber do que gostamos, o que procuramos, donde pertencemos, o que nos identifica, o que nos realiza e aonde conseguimos ver nós mesmos. Era essa a pergunta que o nosso personagem tinha acabado de se fazer. “Quem sou eu?”.

De nada nos importaria saber, muito menos à sombra, por quais caminhos iria o sujeito enveredar. Parado na sala daquela casa escura e silenciosa o nosso personagem estava em movimento como nunca antes esteve. Ele tinha a pergunta e, por isso, tinha o que buscar. Então, ele tinha a sua resposta. Por fim, ele, por estar procurando a essência do seu ser, tinha chegado à essência do seu ser.

A partir daí a sombra ficaria calada. Eternamente calada. Afinal, não havia mais nada a ser dito. Somente a ser buscado.

Rafael de Paula

À procura do eu (des)conhecido



Parte V – A solidão

Na verdade, ex-vendedor de bíblias. Foram vendidas todas elas a um sebo nas imediações de sua residência, onde trabalhava um idoso já desprovido de alguns de seus dentes e da maioria dos seus cabelos. Um homem que comprava todo e qualquer livro – estivesse ele já carcomido por traças ou desgastado pelo próprio tempo – como se fosse novo, como se fosse o primeiro. “Por que vendeu os livros ao homem das lojas de sebos?”. Era a sombra, que, pela primeira vez, não assustou o sujeito. “Porque achei conveniente, ora! Que tem demais nisso?”. “Nada, penas queria saber o porquê de tal ato; e gostaria também que você soubesse”. O homem passou a refletir. Por quê havia feito aquilo? As bíblias foram todas elas repassadas a um vendedor que tinha o brilho no olhar que faltava ao nosso personagem e, talvez por isso, tenha resolvido deixar os tantos livros com ele. Identificamos muito facilmente nos outros aquelas coisas que nos faltam, ainda que, muitas vezes, não sejamos capazes de ter consciência dessa identificação. Nosso vazio reverbera quando vemos presente em alguém aquilo que nos falta. A reverberação é o grito desesperado do vazio que vê sua completude, ao mesmo tempo, tão perto e tão distante. É a ausência que reconhece a presença. Disso, concluímos que bem aventurados são aqueles que separam isso da inveja. E, provocado pela sombra, deve ter sido isso que nosso amigo concluiu nessas últimas andanças pelo seu labirinto interior. 

sábado, 16 de julho de 2011

À procura do eu (des)conhecido


Parte IV – O infinito

Em casa, descansava. Absorto, não via o passar das horas e nem ao menos percebia o tempo que perdia a pensar em nada. Pensava no futebol, na novela e no cão que pretendia comprar. Que precisava de um cão era certo. É bem provável que tanto a novela, o futebol quanto o cão eram modos alternativos de preencher-lhe os buracos que existiam no peito. Na procura de alento para a solidão, buscamos, muitas vezes, desesperados, objetos materiais ou simbólicos que possam nos livrar desse mal. Ainda sim, sempre objetos. É assim que acabamos por nos alienar e nos preocupar com as coisas frívolas: procurando objetos para nos tapar os buracos do coração e as angústias da alma, esquecemos-nos de encontrar os sujeitos. Assim, objetificamos a nós mesmos e aos outros. Sujeitamos o sujeito à objetificação, tendo como objetivo o objeto sujeitado. Reificamos corpo, mente e espírito, tanto próprio quanto do outro, não nos permitimos acesso ao conhecimento da alteridade e passamos a viver num mundo de coisas e objetos, de seres humanos petrificados por nosso próprio olhar. Tal como fazia a Medusa, da mitologia grega. Assim, mais cedo ou mais tarde, encontraremos nosso Perseu. Era o que fazia o indivíduo dessa história mas, por ora, o algoz de nosso infeliz homem não chegou e, talvez, nós, os construtores dessa narrativa, sejamos capazes de salvá-lo da perdição.

Voltemos à sombra, que, com nossa demora, já se encontra impaciente para falar. “No que pensa?”. Ainda não acostumado às intervenções repentinas e inoportunas da sua nova e inseparável companheira – que, na penumbra, mal podia ser delimitada – foi incapaz de dissimular o susto. “Até hoje continua a se assustar quando resolvo falar?”. “Claro, o que não é de se espantar. Afinal, não conheço viva alma que alguma vez me tenha relatado conversar com a própria sombra”. “De qualquer modo, no que pensava antes de eu te assustar?”. “Nada que valha a pena. Mas agora penso na solidão”. “Realmente, tem passado muito tempo sozinho. Que fez de suas antigas companhias, tal como seus pais e amigos?”. “Eu, nada. Apenas nossos caminhos se desviaram e, por isso, me encontro só”. “Talvez porque fuja”. E talvez fosse mesmo. A partir daí, os pensamentos do homem passaram a tomar esses rumos, caminhos do questionamento do porquê da solidão. Tal como toda reflexão, não é certo que se chegue a uma resposta. Muito pelo contrário. São maiores as chances de emergirem mais questões. Mas são essas indagações que levam, infinitamente, a outras indagações, que nos colocam em movimento infinito; talvez aí sejamos capazes de superar o finito que limita nossas existências na Terra. Não na imortalidade do ser – porque aí já estaríamos a partir para outros campos –, mas na infinitude irradiante da pergunta – de um ser para si mesmo e de um ser para o outro – infinitamente repetida. É possível que seja a pergunta a grande responsável por colocar o mundo em movimento. Se não o mundo, pelo menos a vida do nosso vendedor de bíblias.