sábado, 17 de setembro de 2011

Sobre deuses e homens


O vento soprava leve, como a acariciar as existências daqueles que o sentiam ali, naquele jardim imaculado. Debaixo de uma figueira, protegido pela sombra, uma criatura se mantinha inerte, à exceção da sua mente, provocada pelo sopro de vida que lhe vinha, talvez, do fundo d’alma, mas que ainda não sabia onde colocá-lo ou como usá-lo. Talvez fosse por isso que estivesse ali, a meditar desde os tempos mais remotos. Então, com exceção da mente, o resto era estático. No céu, algumas nuvens se aglomeravam enquanto trovões ressoavam pelo jardim. “Hoje chove”, previu.

Realmente começava a chover. A chuva torrencial era incapaz de mover uma só parte do corpo daquele ser, que continuava sentado debaixo da árvore. As flores de lótus, que ali estavam desde os tempos remotos, eram castigadas pelo vento, mas se mantinham firmes, lutando para que não fossem extirpadas. Um raio caiu do céu, sem atingir, contudo, a árvore ou o ser que embaixo dela permanecia, mas muito próximo dali. Do lugar onde havia caído o raio, apareceu outra criatura, que indagou à primeira: “que fazes?”. Desperto de estado semelhante ao torpor, a primeira levantou a cabeça. “Por que me interrompe?”.

Dotado de um fulgor extasiante, o sol, mesmo com a chuva, impunha sua presença àqueles dois que se encaravam ali embaixo. Um eclipse se iniciava. Parcial. Total. Escuridão. Nesse momento, aparecia um terceiro à cena inicial. Este, que agora iluminava o jardim, indaga: “que fazem aí?”.

Terrivelmente incomodado com a luz que acabara, repentinamente, em sua festa – apesar de disso não reclamarem os mais lascivos -, depois de tropeçar em seres que se uniam, em garrafas de vinho, em mais outros tantos quantos objetos não identificáveis naquele breu, surgia mais um naquele jardim, ainda levemente embriagado mas cônscio de que algo ali não estava bem. “Que acontece aqui?”.

Agora na escuridão, uma estrela se destacava. O verbo está no passado pois a estrela acabava de sumir. A estrela de Vênus havia sumido e um quarto ser se juntava aos quatro que se encaravam na terra. “Por que estes olhos tão feios uns para os outros?”, disse a figura feminina, que impressionava por sua beleza esplendorosa.

Do alto da árvore, antes absorto em pensamentos aos quais só a ele mesmo dizem respeito, erguia-se a figura de mais uma criatura. Aparentemente a mais incomodada de todas ali presentes com a súbita e inesperada reunião, desceu e fitava todos eles nos olhos, sustentando um desafio tácito.

O primeiro só queria meditar. O segundo, impotente às eternas meditações do primeiro, vistas como uma afronta ao seu poder supremo, resolveu por lhe impor sua presença e deixar bem claro quem era quem. O terceiro, invejoso do segundo, não quis ficar para trás e quis mostrar a todos a magnificência do sol. O quarto queria mostrar que a libertinagem e boemia eram as melhores formas de sorver os prazeres da vida. A quinta queria mostrar que era mais bela do que todos ali, e não haveria alguma ocasião melhor que esta para tal. O sexto ficou incomodado com a soberba de todos. Primeiro discutiram quem era o mais poderoso. Cotejos eram inevitáveis, mas pelas idiossincrasias inerentes a qualquer criatura vivente, tal início de peleja se mostrou descabida; todos, ao seu modo particular, eram poderosos. Passaram a debater seus feitos, mas todos ali já haviam feito coisas grandiosas, que não deixavam dúvidas sobre seu poder, capacidade e benevolência. Depois discutiram sobre a possibilidade de algum deles ser, de fato, o mais antigo. Mas a vetustez era incomparável, pois não sabiam muito bem quando surgiram e eram imortais; logo, a ideia de tempo não fazia sentido para eles. Depois passaram a falar dos seus propósitos no universo; mas estes, por mais que as palavras se mostrassem distintas e os discursos mais ou menos elaborados, eram, fundamentalmente, os mesmos. Passaram a comparar a beleza, mas, apesar de haver uma visivelmente mais bonita do que os outros cinco, logo chegaram à opinião quase unânime de que estas aparências mais bem torneadas não podem valer de muita coisa nesse mundo, a não ser às primeiras vistas, às quais só se prendem os parvos; como era esperado, isso despertou a ira da quinta criatura, pois seu maior dote, ali, de nada valia, ainda que ela tivesse outras qualidades as quais tiveram de emergir devido às necessidades. Também chegaram à conclusão quase unânime de que não valia a pena existir de forma perdulária e pândega e evitar, assim, os questionamentos mais essenciais; isso, como era de se esperar, deixou um deles profundamente irritado. Contudo, a insofismável equivalência relativa das existências dos seres ali presentes não foi suficiente para dar fim à discussão. Imortais, não se importariam de passar os séculos ali, debatendo. E enquanto discutiam, não perceberam que, desde que resolveram largar seus afazeres para debater, o mundo estava sem luz, sem chuva, sem beleza e sem paz. A sabedoria infinita de todos eles seria capaz de manter a discussão por toda a eternidade. Inflexíveis e com sentimentos de onipotência inexpugnável, debatiam, argumentavam, filosofavam. O que continuaria até o fim dos tempos, caso quisessem. Contudo, um deles, que tinha ficado cada vez mais calado durante os últimos tempos – não se sabe se minutos, meses ou séculos – resolveu, por fim, se calar. Agora a discussão tinha apenas cinco. Percebeu que não discordava de nenhum deles e, portanto, não tinha o que dizer, impor e argumentar. Os outros, por sua vez, também não divergiam em ponto algum. E discutiam.

Havia, abaixo do jardim em que se encontravam, um abismo tomado em seu interior pela neblina. Uma névoa densa, misteriosa, que não permitia às vistas alcançar tanto oo que havia dentro do precipício quanto o que estava além dele. Dizia-se que quem ali caísse e respirasse daquele ar deixaria de ser imortal e infinito, tanto em sua existência quanto em sua sabedoria. Era um local temido pelos seres que ali viviam ou que, por algum destes acasos da vida, por ali passavam. Dali para baixo a vida passaria a ter um fim certo. Durante a discussão que se encaminhava a ser perpétua, aquele que já havia se calado começou a caminhar até o precipício. Depois de algum tempo – não se sabe quanto – de contemplação, não de dúvida – afinal, aquilo era tudo que ali havia para ser contemplado –, atirou-se no precipício. Sentiu o vento no rosto, mas este era diferente daquele de cima. Era um sopro de vida. Inspirou profundamente, sorvendo, sem moderação, a vida que adentrava seu ser por aquela névoa. Agora era mortal, e pensou nisso nos poucos minutos em que caía. Atingiu o chão, machucou-se, levantou-se e olhou para cima. Tal como antes, tinha algo a fazer. Mas alguma coisa havia mudado.

Deuses, os demiurgos do homem.




Rafael de Paula