quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

De areia



Sem perceber, Pierre Menot fazia o movimento contrário. Quando olhava para a cachaça, via nela todas as suas angústias, sofrimentos, arrependimentos e tristezas; num único gole, queria botar tudo isso para dentro de novo, para ninguém mais ver e saber o tanto que sofria. Afinal, a dor era só sua e ninguém tinha o direito de vê-la e julgá-la, de reconhecê-la, de se compadecer ou dela zombar. Não era justo. Como era dor demais, o álcool não podia deixar de ser proporcional e um gole estava longe de bastar. Um para a angústia, três para a tristeza, mais três para o arrependimento e um último ao pai, que sempre o havia alertado; duas cervejas para a tristeza de hoje e seis para a de sempre; um olho roxo e um lábio sangrando para a culpa e necessidade de autopunição – ainda que indiretamente auxiliada; cinco cigarros para rever a vida, uma vez em cada um e, em cada, uma vida diferente, ainda que sempre triste, e outro cigarro para flertar, fingindo que ainda se importava; um trago de enrolado de Cannabis sativa para cavar o poço, que ainda não era fundo o suficiente. Se todos ali no bar fossem atletas, seu porre seria considerado olímpico. Depois da bagunça, dos golpes e do tombo, silêncio, sucedido por um burburinho, uma sirene, algumas pessoas de roupas brancas que corriam e faziam tudo muito rápido, mas sem pressa, e, no fim, alguns comentários perniciosos de gente da mesma estirpe que, para não admitir sua própria fraqueza de espírito, se julgava superior. Estavam todos não no mesmo barco, mas em barcos igualmente furados, afundando-se, isoladamente, em suas tristezas particulares.

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Estava tudo branco demais. Havia um ruído eletrônico que, de alguma forma, representava sua freqüência cardíaca. “É melhor você se tratar”, diziam alguns jalecos brancos que por ele passavam. Quem essa gente pensa que é?

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A claridade era insuportável, tal como o barulho. Centenas de pistões lançando gasolinas em bombas, movimentando rodas borrachudamente queimadas, produziam uma poluição plural. Alguns se zangavam com os encontrões que não podia evitar, enquanto outros chegavam a se preocupar, sem, contudo, deixarem de andar. A rua estava suja de fuligem, borracha e sola de sapato. A pressa para chegar a algum lugar deixa um rastro perceptível. No caminho, as quadras pareceram montanhas, mas finalmente estava diante do interfone, da porta e da lembrança das chaves. O porteiro cedeu uma chave e um assentimento discreto foi tudo que pôde fazer. Já era a quarta em menos de um ano.

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O cheiro de poeira estava em todo canto. Na verdade, não era bem de poeira: era cheiro de solidão, que é muito mais forte e facilmente identificável. Cama, criado, armário, mesa e duas cadeiras, um sofá de três lugares e uma poltrona, televisão e rádio, oito copos, fogão, um prato de louça e um de alumínio, geladeira, três garfos e duas facas, pia e tanque. Longe de ser simples, era uma casa abandonada, em uso. No sofá, deitou e descansou pela primeira vez em dois dias. O sol incomodava, mas as forças lhe faltavam e as persianas continuaram abertas. Dormiu um sono quente e sudoríparo, assaz agitado, com imagens do que tinha e não tinha sido. Normalmente era o contrário, mas, naquele momento, as imagens do que tinha sido doíam muito mais.

A maldita velha já batia à porta. “Não vou abrir”, era o que pensava. As batidas continuaram de forma insistente, incansáveis, e o seu coração, que já batia cansado, não podendo suportar tanto vigor, fez o corpo abrir a porta, numa rara injeção de ânimo. “Bom dia o inferno!”, pensou. “Fome, não tenho”, disse. “Está meio sujo, mas se insiste...”, resignou-se. A companhia, contudo, não era ruim, como demonstrava a reação inicial: era a companhia mais agradável possível: uma mulher simpática, não velha, como ele sempre insistia em pensar, afável, preocupada, inteligente ao seu modo e, também ao seu modo, feliz. Era também bonita, mas quando os olhos estão fechados, a beleza não aparece. O grande problema da mulher era sua capacidade de enxergar o coração e isso era insuportável para ele. Ela o lia como um livro infantil e o interpretava como gente grande. Era esse seu grande defeito. Quem ela pensa que é?

Horas se passaram em conversas e assuntos que mudavam e que se desenvolviam de modo já habitual. Chegaram ao ponto de sempre e a carranca do homem apareceu, como sempre. Não era a felicidade que ele havia tido e desperdiçado ou deixado de buscar. Não era isso. Era a felicidade que ele lutou e que, por ele não poder controlar tudo e por ser pequeno como todo mundo é, não dependia apenas dele. Era isso que ele precisava entender, mas não queria, não podia. Anos e anos construindo um castelo de areia, lindo, imenso, perfeito, mas de areia; e o vento soprou, como sempre fez e sempre haveria de fazer. Reconhecer a fragilidade do seu construto, da obra de sua vida, era difícil. Estava perdido não nas ruínas, porque castelos de areia, quando desabam, não geram escombros. Estava preso no deserto que havia criado com a destruição da sua vida. De vez em quando até via o mar, porque a maré sempre sobe, mas tinha medo de construir uma ponte de areia, a única que sabia fazer. E por isso não fez mais nada. Como até a areia se cansa de ficar parada, ela se torna movediça. O perigo estava aí.

E essa gente, de casa de tijolo e cimento, quem eles pensam que são?




segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Batidas


Ela ainda se movia discreta e sutilmente, como se não tivesse aceitado aquela partida inesperada, indiferentemente acontecida; acostumada como estava a ser batida, esmurrada, estapeada, violentada, desta vez não havia sido ao menos tocada e tamanho era o seu descontentamento diante de tanta indiferença que ela aproveitava a gelada e leve brisa para tornar visível o seu antes sempre silencioso e inerte debater. Quando a própria brisa já havia, há muito, cansado de soprar, foi tocada e subsequentemente posta, de forma muito delicada e despreocupada, naquele que parecia ser o seu lugar de origem, onde parecia ter sido feita para estar. Contudo, não havia ali liberdade alguma, como se no conforto estático, resignado e humilhantemente conformado, como se nessa condição houvesse certa inconformidade travestida de inércia, que, de tão pequena e insignificante, se tornara imensa.

Recebeu um leve toque do mesmo lado de onde aquela gélida brisa havia voltado a soprar, frieza que o próprio tempo já havia transmutado em frescor. A sensação proveniente do toque não pôde ser devidamente avaliada devido à sua fugacidade titubeantemente apressada; o que sentiu foi apenas um desconforto provocante, e nada mais. De repente recebeu uma pancada - do lado oposto ao da brisa glacial - dessas que fariam o mundo tremer por inteiro. Ela balançou. Novamente sentiu o toque que antes recebera, mas desta vez mais duradouro, e percebeu que era de uma insegurança morna, que contrastava com o frio do ar que sempre a atingia daquele mesmo lado. Mais uma estrondosa pancada de um lado, enquanto o toque permanecia do outro: por isso ela se mantinha resoluta, inabalável, invencível, e do estrondo que havia sacudido a existência de tudo, sentiu apenas um eco, um leve reverberar de uma poderosa força que a atingia, mas não a trespassava; neste momento em que o universo tremeu todas as suas criaturas se indignaram: aquele que a tocava, que a segurava, não tremia, parecendo desafiar todo o fluxo e toda a ordem natural das coisas. Era um desafio insolentemente obstinado.

A pancada não veio mais e o toque desapareceu. Depois da violência veio a chuva e junto com ela barulho de mar. A água e o sal , a maresia, têm seu modo peculiar de agir no mundo. Não a percebemos com clareza, apenas vemos seus estragos, muitas vezes sem saber que ela mesma é a causa da destruição que percebemos. Depois veio o fogo que, tal como a maresia, nada pôde fazer. A brisa, por sua vez, antes tornada morna pela convivência, tornou-se fria e, por isso, insuportavelmente fria. De onde vinha a pancada, a maresia e o fogo, não veio mais nada, enquanto o toque voltou e permaneceu: não sabia muito bem se para mantê-la fechada ou na espera de abri-la. Talvez as duas coisas, ao mesmo tempo. A calmaria, por sua vez, permitiu perceber que no inverno havia ainda vestígio de um calor, esperançoso, que se revelava em uma tímida batida apenas auscultável.



sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Sobre "ser"


São poucos aqueles que são. Ser: palavra complicada de colocar em qualquer linha torta, por mais inocente e despretensioso que seja o texto. O que é “ser”? Seria o verbo? Seria o substantivo? Aqui pretendo atribuir à essa palavra um sentido mais amplo. Vejamos, pois, qual seria esse significado que vai além. Apenas quero deixar bem claro que estou fugindo de qualquer pretensão de cunho filosófico, ou melhor, estou abdicando (por falta de conhecimento sobre o assunto) de colocar essas palavras dentro de alguma discussão filosófica histórica. É evidente que a metafísica, com seus tratados sobre o ser, já o fez com muito mais critério, rigor e fundamento do que eu. Digo isso apenas para evitar qualquer crítica que vá nesse sentido, vinda de uma discussão da qual este texto não pertence, não pretende entrar e da qual eu me esquivo. Então voltemos à palavra “ser”.


Gostaria de acreditar que “ser” não se refere apenas a simples substantivos (sejam eles comuns ou próprios). “Os seres que habitam esse mundo”, “o ser humano” ou “O ser supremo”. São definições válidas para o uso cotidiano, para uma compreensão mútua que não só é oriunda, mas que necessita de uma ausência de reflexão criteriosa (afinal, se fossemos, a todo momento, parar para pensar o que são, de fato, as coisas, ou se as coisas existem, ou se temos possibilidade de conhecer as coisas, se estivéssemos sempre com esses pensamentos na cabeça, a atitude natural não existiria e seríamos incapazes de viver na realidade[1] que se nos apresenta), mas ela me parece insuficiente. Também não me parece suficiente colocar tal palavra como um verbo, como ligação de um sujeito a um predicado. “Vai ser gauche na vida”, “Lacerda é corrupto” ou “Dilma é mentirosa” também são frases que, a meu ver, não dão conta de abraçar as possibilidades da palavra “ser”.



Se estas definições acima não dão conta, por que não as unir? Explico-me. “Ser” é uma coisa existente, que “é”, mas que é de acordo com um critério, um crivo. O “ser” não pode ser si mesmo se não agir de uma maneira que o caracterize. “Ser”, então, refere-se a um conjunto de ações, posicionamentos e movimentos que caracterizam uma criatura existente não simplesmente por ela existir, nem por efetuar qualquer ação de modo arbitrário, mas agir segundo um critério pessoal. Isso é “ser”. Verbo e substantivo. Verbo unido, indissociavelmente unido, ao substantivo (ou vice-versa). Uma separação entre estas duas características de “ser” implica, necessariamente, em não ser.



Não adianta falar de um conceito se ele não tiver implicações práticas. O que decorre de uma separação entre o "ser" enquanto verbo e enquanto substantivo? Decorre uma pessoa que não “é”, uma sujeito que não “é” ele mesmo. Pode até “ser” no âmbito da reatividade, da superficialidade, mas não pode “ser” no sentido mais amplo e pleno da palavra. Essas pessoas digladiam desesperadamente contra si. Desesperadamente. Lutam contra aquilo que é o critério mais pessoal da sua existência. Sabem que não é trabalhando daquele jeito que elas mais se realizam, mas o fazem porque o chefe manda, ou porque esse é o jeito considerado correto, enquanto sua pessoa desaparece. Sabem que precisam daquela pessoa, mas não admitem (ou se admitem, por orgulho, não vão atrás). Sabem que estão felizes vendo desenhos animados, ou jogando jogos, ou comendo algodão doce, ou indo ao parque de diversões, mas deixam de fazê-lo porque “isso não é coisa de gente adulta e madura” ou porque “precisam crescer”. Daí só pode vir a angústia. Vem também a conhecida “crise existencial”, que não é quando a pessoa não sabe o que é ou o que quer, mas vem de um movimento contínuo de recusa de si mesmo que não pode levar a outra coisa que não seja a sensação de não “ser”: de tão afastada de si (e, consequentemente, incapaz de se reconhecer em qualquer coisa justamente por estar distante da fonte original), a pessoa se vê desamparada e em desespero, sem saber quem ou o que é. Repito e repetirei quantas vezes forem necessárias: se não agir conforme um critério pessoal a pessoa não pode ser quem ela é e, por isso, não pode “ser”. O que somos está em nós, e basta um olhar atento para a nossa relação com a realidade para evidenciar o nosso “ser” pleno no mundo. Não separar substantivo do verbo: condição necessária para afirmar o que “somos” e afirmar que “somos”.

“Sou” quando sou eu mesmo. Se não, é não “ser”.






[1] Também não quero entrar no mérito da discussão sobre o que é realidade, o que é a realidade ou se a realidade existe.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

O bibliotecário de Mnemon



Segundo as contas dos mais entendidos das coisas da cidade, a biblioteca estava ali há setenta e seis anos, oito meses e treze dias. Sabe-se que um homem a construiu sozinha: vindo de terras distantes, carregando uma dúzia de livros, começou a erguer as estruturas e ao final de oito anos de trabalho, mesmo depois do grande desabamento que ocorreu entre o quinto e o sexto ano – que destruiu um terço do que já havia sido construído – a biblioteca ficou pronta. Havia muito espaço e um grande número de estantes, mas livros mesmo, muito poucos: aos seis volumes iniciais, nesses vários anos de construção, somaram-se apenas cinco, o que totalizava onze livros distribuídos em trezentos e quarenta e seis metros quadrados. Mas como todas as bibliotecas de Mnemon eram particulares – na verdade, não havia casas, bares, prédios comerciais, parques ou indústrias, pois todas as construções daquela cidade eram bibliotecas –, não havia como saber muito mais sobre aquilo que se passava dentro. A estrutura básica de todas as construções era a mesma, mas o número de estantes e prateleiras, tal como a sua conformação variavam ao infinito, tal como a mesa do bibliotecário, que poderia se posicionar a qualquer canto. Todos tinham acesso à primeira estante de cada construção, a qual possuía tamanhos variáveis tal como um número variado de livros. Ninguém, fosse quem fosse, seria capaz de entrar na parte mais central de outra biblioteca: limitar-se-iam, as pessoas todas, às impressões imprecisas do exterior para, a partir destas, imaginar o que havia dentro. As notícias d’alhures eram, portanto, restritas e qualquer julgamento acerca das outras bibliotecas era, por essência, precipitado. O homem que ergueu aquela construção, que semeou a terra e que limpou tudo passou a ser o bibliotecário, como era previsível e até mesmo de direito. Os livros chegavam sempre por encomendas vindas d’alhures, algumas com remetente identificado e devidamente etiquetado e apresentado; outras vinham de lugares inesperados; outras sem identificação, chegavam como presentes inauditos. Passado algum tempo, o número de livros da biblioteca aumentou consideravelmente, de modo que todos os livros eram identificados e organizados pelo bibliotecário, cuja vida e forças se destinavam unicamente a isso.
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A fachada revelava uma pintura amarelo-clara já bastante desgastada que, por isso, mesclava tonalidades acinzentadas e amarronzadas que certamente não faziam parte da cor original. O telhado, já tremendamente desdentado, ainda conservava algumas telhas em bom estado, as quais se mantinham resolutas junto aos alicerces e suportes de madeira que já haviam aguentado chuva, sol, vento e também o próprio tempo, que, muitas vezes, é capaz de mais destruição do que o mais forte dos tornados e o mais violento dos terremotos. As janelas eram sete – duas na fachada, duas em cada lateral e apenas uma nos fundos –, que já adquiriam a tonalidade escura da madeira prestes a se desfazer na podridão, umas mais outras menos, sendo que os pequenos vidros – oito pequenos quadrados que constituíam cada uma das quatro partes simetricamente iguais das janelas, totalizando exatamente trinta e dois quadrados por janela e, consequentemente, duzentos e vinte e quatro ao se considerar todas as janelas da biblioteca –, especialmente das duas da fachadas, já estavam opacos o suficiente para impedir que transeuntes ou mesmo alguns bisbilhoteiros pudessem ver o que havia lá dentro. A porta, tal como tudo, era bastante velha e já parecia ter perdido bastante da sua madeira e densidade originais: invadida quase em seu todo por cupins, ela já se desfazia em grandes lascas que somente se seguravam à estrutura maior devido aos vários anos de perfeita aderência e união, numa harmonia que não podia ser explicada. Sempre fechada, ainda que nunca trancada, não recebia mais nenhum visitante havia tempos. Todas as coisas ali compartilhavam duas características: a velhice e a singela harmonia das coisas que com o tempo alcançam o equilíbrio; nada era belo demais nem frágil demais. Tudo ali possuía, de alguma forma, força mesclada à beleza: uma força serena e uma beleza selvagem.


Muitos na pequena cidade bibliotecária de Mnemon já ignoravam aquele casarão que, se fosse gente, seria dito moribundo. Passavam todos ali com tamanha indiferença – todos eles bibliotecários de outras bibliotecas – que até mesmo as plantas e ervas daninhas que ali cresciam não podiam deixar de se sentir menosprezadas e, justamente, por isso zangadas.
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A grande sala central era quase vazia, não fosse por um homem sentado à uma pequena mesa retangular, grossa e rústica, mas nem por isso mal feita para os seus propósitos. A luz pouco iluminava o cômodo de forma que seu raio se restringia até pouco mais de dois metros do ponto de onde era emanada. Todo o resto era penumbra. Contudo, o lampião era suficiente para alumiar os livros que o homem folheava. O folhear era quase ininterrupto, à exceção dos raros momentos em que ele achava alguma outra coisa que lhe fosse de interesse e por isso se detivesse em sua leitura. Os livros que terminava de ler eram colocados cuidadosa e meticulosamente em uma pilha no canto direito da mesa, considerando-se o referencial de quem os lia. Na pilha, oito livros dos quais em comum possuíam apenas o fato de serem livros: uns eram largos, outros baixos; uns grossos e outros finos; uns com páginas brancas outros com amarelas e até de outras cores, como mostrava o livro de páginas negras – no caso, o quinto de cima para baixo[1], intitulado A morte dos reis; o terceiro e sexto livros da pilha, intitulados Biografia de José Cândido, eram quase idênticos, não fosse a fonte que diferia: a do terceiro possuía uma caligrafia bela e muito bem trabalhada, possuindo um toque artístico; a do sexto eram letras de máquina de escrever, sem os floreios e caprichos característicos da caligrafia humana. O primeiro, de capa grossa, estampava A crônica da casa assassinada, enquanto o segundo, de capa muito fina, quase como se fosse feita como uma página, possuía o título O velho e o mar. O Sétimo, por sua vez, era O juramento dos amantes. Por fim, o livro que estava nas mãos do homem era Crime e Castigo. Restava saber o que ele procurava naquelas obras de autores regionais, todos eles ou da cidade ou das cidades vizinhas.


No canto esquerdo da mesa, não era possível deixar de notar que havia um bloco de notas, ainda que não fosse possível calcular quanto dele já havia sido gasto. O homem – se formos nos ater aos pormenores, é importante acrescentar que era muito velho, ainda que a observação da provável palidez de sua face nos tenha sido negada pela pouquíssima luz do lugar – tremia ao folhear os livros e mais ainda ao escrever, sendo que esta segunda tarefa era assaz penosa para ele. Parava e voltava a trabalhar em uma frequência que podia ser encarada como supersticiosa de tão metódica. Erguia-se – com esforço – em intervalos tão regulares quanto as pausas e retomadas. Observando bem, todos os seus gestos e movimentos eram dotados de uma regularidade humanamente impraticável.


Dormia exatamente no mesmo horário, até que a descoberta de um livro, em uma das suas costumeiras incursões às estantes da biblioteca – incursões estas caracterizadas por acerto imediato da estante, ligeira demora na definição da prateleira e demora exagerada na escolha do volume – mudou completamente a sua rotina e regularidade costumeiras e até características. Tremia mais e andava cada vez mais devagar; escrevia com muito mais dificuldade e parecia gastar muito mais tempo em devaneios. Parecia que o velho estava morrendo; morrendo de tempo, de morte morrida. Apesar de toda a decadência que lhe fora imposta nos últimos dias, o semblante do senhor, apesar de não abandonar nunca o tom circunspeto que parecia incrustado em cada uma de suas rugas e marcas, não parecia, de forma alguma, aflito. Trabalhava mais tempo, de fato, o que não significava que trabalhava mais. Dedicava-se cada vez mais a três volumes: O sonho dos imortais, Mortem dignitatus e Sensus vitae insolubilis quaestio.


Aos poucos o semblante antes apenas grave foi adquirindo um ar sôfrego, mudança esta que também podia ser percebida nos seus gestos. Já havia terminado de ler O sonho dos imortais, do qual parecia haver compreendido grande parte, o que se podia deduzir apenas pelo fato de tê-lo colocado na pilha das estantes da direita. No bloco de notas, logo embaixo deste título, rabiscou algo como “a não imortalidade”. A partir daí, o semblante mudou de novo, mas desta vez adquiriu um tom ligeiramente mais sereno, ainda que não tranquilo por completo. Já a obra Mortem dignitatus parecia exigir muito do velho, que folheava as páginas com demora: concentrava grande parte das poucas forças que lhe restavam naquele livro. Já havia lido a obra por inteiro, pois voltava e avançava em páginas específicas. Os dias se passavam e ele se deparava com aquelas páginas que pareciam fustigar-lhe quase fisicamente o cérebro. Ainda que lhe restasse apenas uma página, a qual encarava e desafiava por horas a fio, parecia ainda haver muito que se fazer; parecia haver ali uma tarefa das mais árduas. O que se via no homem era a indecisão. Por fim, ergueu-se com dificuldade e colocou o livro em uma caixa negra, imediatamente lacrada e levada ao porão. Junto com alguns outros livros que estavam ali, a obra Mortem dignitatus foi incinerada pelas mais implacáveis chamas que já se viu em qualquer parte de Mnemon. O fogo queimava com tanto ardor e paixão que durante todo aquele dia, tempo exato da duração das chamas, foi impossível não sentir um ligeiro abalo na harmonia natural das coisas. O mais memorioso dos sujeitos esqueceu a que dia, mês, ano e século estava; o mais obstinado dos homens recuou diante da vida; a mais triste das mulheres sorriu diante dos pássaros que cantavam em sua janela; o tolo resolveu atentar para as coisas pequenas e singelas; o tímido chamou a mulher que amava para o cinema; o doente ruborizou; o corajoso tremeu; o rude esboçou um gesto de carinho e o mais fraco dos homens aceitou ser amado.


Restava ainda o Sensus vitae insolubilis quaestio. O livro se mostrava muito fino ao toque e depois de o encarar por um tempo o velho começou a lê-lo. A confusão no velho era nítida: coçava frequentemente a superfície calva da cabeça, deixava aparecer tiques até então dificilmente observáveis e por algumas vezes puxava os poucos cabelos que ainda lhe restavam em acessos de fúria. Na ânsia de terminar o livro, parou de comer e de beber; não se levantava para mais nada e os momentos de divagação foram escasseando até deixarem de ocorrer. Lia avidamente aquele livro fino que, contudo, parecia nunca chegar ao fim. O corpo, diante de tamanhas restrições, foi-se tornando cada vez mais debilitado: a face ficava cada vez mais ossuda e sinistra; os braços afinavam e chegavam a dimensões assustadoramente ínfimas; os cabelos caíram todos; as olheiras eram imensas e, na pouca claridade, misturavam-se às sombras que obscureciam o seu rosto, de forma que pareciam mais imensas manchas negras que ocupavam toda uma parte da face; os olhos, contudo, possuíam um brilho feroz e denotavam uma vontade invencível. O trabalho era ininterrupto e o livro, mesmo assim, nunca chegava às suas páginas finais. Não importa quantas páginas deste livro final foram lidas e nem quanto tempo foi gasto na leitura. O que se sabe ao certo é que a chama da vida de um homem não dura para sempre e foi folheando este livro de páginas intermináveis que a chama da vida daquele velho se extinguiu. O penúltimo suspiro daquele homem foi de decepção e o último de satisfação, ainda que se possa parecer inverossímil tirar de suspiros todas essas coisas.
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A biblioteca estremeceu e rachaduras imensas foram tomando toda a construção. As janelas de madeira quase podre se soltaram das suas molduras e caíram no jardim, todas elas. Os vidros se estilhaçaram ao mesmo tempo, reduzidos a um número infinito de cristais que foram arrastados pelo vento para todos os cantos de Mnemon, de forma que sobre a cidade pairou uma nuvem cristalina que refletia e refratava a luz do sol num amarelo brilhante e vivo, como se fossem vários vagalumes que voassem deixando suas luzes acesas intermitentemente. Tal como as janelas, a porta caiu no chão, num barulho ensurdecedor, que assustou homens, bichos e plantas de toda a região. A parede norte, não resistindo às imensas rachaduras que a consumiam, tombou, levando consigo toda a construção. A poeira demorou as se dissipar, envolvendo todo o jardim, o que impedia que qualquer transeunte pudesse ver algo que se passava naquele terreno. Depois de um dia inteiro no ar, a poeira finalmente baixou e cobriu tudo: paredes, plantas, livros e tudo o mais que ali se encontrava. Já a nuvem de cristais não se dissipou nunca, brilhando noite e dia no céu, imortais, de forma a iluminar a cidade de Mnemon por toda a eternidade. As ruínas da biblioteca e o corpo do velho permaneceram ali eternamente inviolados, mas caso alguém se aventurasse por aquelas bandas não seria capaz de encontrar o último livro que o velho lia. Anos mais tarde, houve relatos de que alguns moradores-bibliotecários encontraram em suas bibliotecas particulares obras com o título Sensus vitae insolubilis quaestio, atribuindo ao acaso ou ao esquecimento o aparecimento destes livros. De onde vinha este livro ninguém podia lembrar ao certo; só se sabe que ele estava lá. Em tempos diferentes, eles sempre eram descobertos para serem mais ou menos lidos e compreendidos. Mas nunca terminados. Até o fim dos tempos.
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Tenório José Cândido da Silva morreu aos setenta e seis anos, onze meses e vinte e cinco dias, devido a complicações vasculares decorrentes de um quadro não controlado de diabetes. Sua morte veio a acontecer exatos três meses e doze dias depois da sua primeira internação no hospital da cidade, dia exato de sua entrada no estado de delírio alternado com momentos de consciência. Antes de morrer, nos raros momentos de plena consciência, chamou vários conhecidos, de tempos antigos e recentes, para relembrar e reavivar alguns dos fatos de sua vida. Nos seus últimos dias, não aceitou mais visitas e dizia que estava trabalhando em sua última tarefa. De fato há muito delirava. Nenhum amigo ou parente de Tenório José Cândido conseguiu descobrir, com precisão, que tarefa era esta. A dúvida também existia, é claro, com relação a sua realização. Mas talvez tudo fosse delírio de um homem já afetado pela doença. Certeza mesmo não há e o que quer que estivesse fazendo Tenório José levou consigo no momento de sua morte.



[1] Todos os referenciais para definir posições enumeradas serão considerados de cima para baixo, se na vertical, e da direita para a esquerda, se na horizontal. Assim se evita maiores explicações quanto ao lugar que ocupam as coisas, coisas estas que se fazem necessárias quando estamos a andar numa biblioteca que possui uma infinidade de obras alocadas em um grande número de estantes. 


                 “Especulais, homens, especulais. Das certezas é que a vida não se move.”