Segundo as contas dos mais
entendidos das coisas da cidade, a biblioteca estava ali há setenta e seis
anos, oito meses e treze dias. Sabe-se que um homem a construiu sozinha: vindo
de terras distantes, carregando uma dúzia de livros, começou a erguer as
estruturas e ao final de oito anos de trabalho, mesmo depois do grande
desabamento que ocorreu entre o quinto e o sexto ano – que destruiu um terço do
que já havia sido construído – a biblioteca ficou pronta. Havia muito espaço e
um grande número de estantes, mas livros mesmo, muito poucos: aos seis volumes
iniciais, nesses vários anos de construção, somaram-se apenas cinco, o que
totalizava onze livros distribuídos em trezentos e quarenta e seis metros
quadrados. Mas como todas as bibliotecas de Mnemon eram particulares – na
verdade, não havia casas, bares, prédios comerciais, parques ou indústrias,
pois todas as construções daquela cidade eram bibliotecas –, não havia como
saber muito mais sobre aquilo que se passava dentro. A estrutura básica de
todas as construções era a mesma, mas o número de estantes e prateleiras, tal
como a sua conformação variavam ao infinito, tal como a mesa do bibliotecário,
que poderia se posicionar a qualquer canto. Todos tinham acesso à primeira
estante de cada construção, a qual possuía tamanhos variáveis tal como um
número variado de livros. Ninguém, fosse quem fosse, seria capaz de entrar na
parte mais central de outra biblioteca: limitar-se-iam, as pessoas todas, às impressões imprecisas do
exterior para, a partir destas, imaginar o que havia dentro. As notícias
d’alhures eram, portanto, restritas e qualquer julgamento acerca das outras
bibliotecas era, por essência, precipitado. O homem que ergueu aquela
construção, que semeou a terra e que limpou tudo passou a ser o bibliotecário,
como era previsível e até mesmo de direito. Os livros chegavam sempre por
encomendas vindas d’alhures, algumas com remetente identificado e devidamente
etiquetado e apresentado; outras vinham de lugares inesperados; outras sem
identificação, chegavam como presentes inauditos. Passado algum tempo, o número
de livros da biblioteca aumentou consideravelmente, de modo que todos os livros
eram identificados e organizados pelo bibliotecário, cuja vida e forças se
destinavam unicamente a isso.
...
A fachada revelava uma pintura
amarelo-clara já bastante desgastada que, por isso, mesclava tonalidades
acinzentadas e amarronzadas que certamente não faziam parte da cor original. O
telhado, já tremendamente desdentado, ainda conservava algumas telhas em bom
estado, as quais se mantinham resolutas junto aos alicerces e suportes de
madeira que já haviam aguentado chuva, sol, vento e também o próprio tempo,
que, muitas vezes, é capaz de mais destruição do que o mais forte dos tornados
e o mais violento dos terremotos. As janelas eram sete – duas na fachada, duas
em cada lateral e apenas uma nos fundos –, que já adquiriam a tonalidade escura
da madeira prestes a se desfazer na podridão, umas mais outras menos, sendo que
os pequenos vidros – oito pequenos quadrados que constituíam cada uma das
quatro partes simetricamente iguais das janelas, totalizando exatamente trinta
e dois quadrados por janela e, consequentemente, duzentos e vinte e quatro ao
se considerar todas as janelas da biblioteca –, especialmente das duas da
fachadas, já estavam opacos o suficiente para impedir que transeuntes ou mesmo
alguns bisbilhoteiros pudessem ver o que havia lá dentro. A porta, tal como
tudo, era bastante velha e já parecia ter perdido bastante da sua madeira e
densidade originais: invadida quase em seu todo por cupins, ela já se desfazia
em grandes lascas que somente se seguravam à estrutura maior devido aos vários
anos de perfeita aderência e união, numa harmonia que não podia ser explicada.
Sempre fechada, ainda que nunca trancada, não recebia mais nenhum visitante
havia tempos. Todas as coisas ali compartilhavam duas características: a
velhice e a singela harmonia das coisas que com o tempo alcançam o equilíbrio;
nada era belo demais nem frágil demais. Tudo ali possuía, de alguma forma,
força mesclada à beleza: uma força serena e uma beleza selvagem.
Muitos na pequena cidade bibliotecária
de Mnemon já ignoravam aquele casarão que, se fosse gente, seria dito
moribundo. Passavam todos ali com tamanha indiferença – todos eles
bibliotecários de outras bibliotecas – que até mesmo as plantas e ervas
daninhas que ali cresciam não podiam deixar de se sentir menosprezadas e, justamente,
por isso zangadas.
...
A grande sala central era quase
vazia, não fosse por um homem sentado à uma pequena mesa retangular, grossa e
rústica, mas nem por isso mal feita para os seus propósitos. A luz pouco
iluminava o cômodo de forma que seu raio se restringia até pouco mais de dois
metros do ponto de onde era emanada. Todo o resto era penumbra. Contudo, o
lampião era suficiente para alumiar os livros que o homem folheava. O folhear
era quase ininterrupto, à exceção dos raros momentos em que ele achava alguma
outra coisa que lhe fosse de interesse e por isso se detivesse em sua leitura.
Os livros que terminava de ler eram colocados cuidadosa e meticulosamente em
uma pilha no canto direito da mesa, considerando-se o referencial de quem os
lia. Na pilha, oito livros dos quais em comum possuíam apenas o fato de serem
livros: uns eram largos, outros baixos; uns grossos e outros finos; uns com
páginas brancas outros com amarelas e até de outras cores, como mostrava o
livro de páginas negras – no caso, o quinto de cima para baixo,
intitulado A morte dos reis; o
terceiro e sexto livros da pilha, intitulados Biografia de José Cândido, eram
quase idênticos, não fosse a fonte que diferia: a do terceiro possuía uma
caligrafia bela e muito bem trabalhada, possuindo um toque artístico; a do
sexto eram letras de máquina de escrever, sem os floreios e caprichos
característicos da caligrafia humana. O primeiro, de capa grossa, estampava A crônica da casa assassinada, enquanto
o segundo, de capa muito fina, quase como se fosse feita como uma página,
possuía o título O velho e o mar. O
Sétimo, por sua vez, era O juramento dos
amantes. Por fim, o livro que estava nas mãos do homem era Crime e Castigo. Restava saber o que ele
procurava naquelas obras de autores regionais, todos eles ou da cidade ou das
cidades vizinhas.
No canto esquerdo da mesa, não
era possível deixar de notar que havia um bloco de notas, ainda que não fosse
possível calcular quanto dele já havia sido gasto. O homem – se formos nos ater
aos pormenores, é importante acrescentar que era muito velho, ainda que a
observação da provável palidez de sua face nos tenha sido negada pela
pouquíssima luz do lugar – tremia ao folhear os livros e mais ainda ao escrever,
sendo que esta segunda tarefa era assaz penosa para ele. Parava e voltava a
trabalhar em uma frequência que podia ser encarada como supersticiosa de tão
metódica. Erguia-se – com esforço – em intervalos tão regulares quanto as
pausas e retomadas. Observando bem, todos os seus gestos e movimentos eram
dotados de uma regularidade humanamente impraticável.
Dormia exatamente no mesmo horário,
até que a descoberta de um livro, em uma das suas costumeiras incursões às
estantes da biblioteca – incursões estas caracterizadas por acerto imediato da
estante, ligeira demora na definição da prateleira e demora exagerada na
escolha do volume – mudou completamente a sua rotina e regularidade costumeiras
e até características. Tremia mais e andava cada vez mais devagar; escrevia com
muito mais dificuldade e parecia gastar muito mais tempo em devaneios. Parecia
que o velho estava morrendo; morrendo de tempo, de morte morrida. Apesar de
toda a decadência que lhe fora imposta nos últimos dias, o semblante do senhor,
apesar de não abandonar nunca o tom circunspeto que parecia incrustado em cada
uma de suas rugas e marcas, não parecia, de forma alguma, aflito. Trabalhava
mais tempo, de fato, o que não significava que trabalhava mais. Dedicava-se
cada vez mais a três volumes: O sonho dos
imortais, Mortem dignitatus e Sensus vitae insolubilis quaestio.
Aos poucos o semblante antes
apenas grave foi adquirindo um ar sôfrego,
mudança esta que também podia ser percebida nos seus gestos. Já havia terminado
de ler O sonho dos imortais, do qual
parecia haver compreendido grande parte, o que se podia deduzir apenas pelo
fato de tê-lo colocado na pilha das estantes da direita. No bloco de notas,
logo embaixo deste título, rabiscou algo como “a não imortalidade”. A partir
daí, o semblante mudou de novo, mas desta vez adquiriu um tom ligeiramente mais
sereno, ainda que não tranquilo por completo. Já a obra Mortem dignitatus parecia exigir muito do velho, que folheava as
páginas com demora: concentrava grande parte das poucas forças que lhe restavam
naquele livro. Já havia lido a obra por inteiro, pois voltava e avançava em
páginas específicas. Os dias se passavam e ele se deparava com aquelas páginas
que pareciam fustigar-lhe quase fisicamente o cérebro. Ainda que lhe restasse
apenas uma página, a qual encarava e desafiava por horas a fio, parecia ainda
haver muito que se fazer; parecia haver ali uma tarefa das mais árduas. O que
se via no homem era a indecisão. Por fim, ergueu-se com dificuldade e colocou o
livro em uma caixa negra, imediatamente lacrada e levada ao porão. Junto com
alguns outros livros que estavam ali, a obra Mortem dignitatus foi incinerada pelas mais implacáveis chamas que
já se viu em qualquer parte de Mnemon. O fogo queimava com tanto ardor e paixão
que durante todo aquele dia, tempo exato da duração das chamas, foi impossível
não sentir um ligeiro abalo na harmonia natural das coisas. O mais memorioso
dos sujeitos esqueceu a que dia, mês, ano e século estava; o mais obstinado dos
homens recuou diante da vida; a mais triste das mulheres sorriu diante dos
pássaros que cantavam em sua janela; o tolo resolveu atentar para as coisas
pequenas e singelas; o tímido chamou a mulher que amava para o cinema; o doente
ruborizou; o corajoso tremeu; o rude esboçou um gesto de carinho e o mais fraco
dos homens aceitou ser amado.
Restava ainda o Sensus vitae insolubilis quaestio. O
livro se mostrava muito fino ao toque e depois de o encarar por um tempo o
velho começou a lê-lo. A confusão no velho era nítida: coçava frequentemente a
superfície calva da cabeça, deixava aparecer tiques até então dificilmente
observáveis e por algumas vezes puxava os poucos cabelos que ainda lhe restavam
em acessos de fúria. Na ânsia de terminar o livro, parou de comer e de beber;
não se levantava para mais nada e os momentos de divagação foram escasseando
até deixarem de ocorrer. Lia avidamente aquele livro fino que, contudo, parecia
nunca chegar ao fim. O corpo, diante de tamanhas restrições, foi-se tornando
cada vez mais debilitado: a face ficava cada vez mais ossuda e sinistra; os
braços afinavam e chegavam a dimensões assustadoramente ínfimas; os cabelos
caíram todos; as olheiras eram imensas e, na pouca claridade, misturavam-se às
sombras que obscureciam o seu rosto, de forma que pareciam mais imensas manchas
negras que ocupavam toda uma parte da face; os olhos, contudo, possuíam um
brilho feroz e denotavam uma vontade invencível. O trabalho era ininterrupto e
o livro, mesmo assim, nunca chegava às suas páginas finais. Não importa quantas
páginas deste livro final foram lidas e nem quanto tempo foi gasto na leitura.
O que se sabe ao certo é que a chama da vida de um homem não dura para sempre e
foi folheando este livro de páginas intermináveis que a chama da vida daquele
velho se extinguiu. O penúltimo suspiro daquele homem foi de decepção e o
último de satisfação, ainda que se possa parecer inverossímil tirar de suspiros
todas essas coisas.
...
A biblioteca estremeceu e
rachaduras imensas foram tomando toda a construção. As janelas de madeira quase
podre se soltaram das suas molduras e caíram no jardim, todas elas. Os vidros
se estilhaçaram ao mesmo tempo, reduzidos a um número infinito de cristais que
foram arrastados pelo vento para todos os cantos de Mnemon, de forma que sobre
a cidade pairou uma nuvem cristalina que refletia e refratava a luz do sol num
amarelo brilhante e vivo, como se fossem vários vagalumes que voassem deixando
suas luzes acesas intermitentemente. Tal como as janelas, a porta caiu no chão,
num barulho ensurdecedor, que assustou homens, bichos e plantas de toda a
região. A parede norte, não resistindo às imensas rachaduras que a consumiam,
tombou, levando consigo toda a construção. A poeira demorou as se dissipar, envolvendo todo o jardim, o que impedia que qualquer
transeunte pudesse ver algo que se passava naquele terreno. Depois de um dia inteiro no ar, a poeira finalmente baixou e
cobriu tudo: paredes, plantas, livros e tudo o mais que ali se encontrava. Já a
nuvem de cristais não se dissipou nunca, brilhando noite e dia no céu,
imortais, de forma a iluminar a cidade de Mnemon por toda a eternidade. As ruínas da biblioteca e o corpo do velho permaneceram ali
eternamente inviolados, mas caso alguém se aventurasse por aquelas bandas não
seria capaz de encontrar o último livro que o velho lia. Anos mais tarde, houve
relatos de que alguns moradores-bibliotecários encontraram em suas bibliotecas
particulares obras com o título Sensus
vitae insolubilis quaestio, atribuindo ao acaso ou ao esquecimento o aparecimento
destes livros. De onde vinha este livro ninguém podia lembrar ao certo; só se sabe
que ele estava lá. Em tempos diferentes, eles sempre eram descobertos para
serem mais ou menos lidos e compreendidos. Mas nunca terminados. Até o fim dos
tempos.
...
Tenório José Cândido da Silva
morreu aos setenta e seis anos, onze meses e vinte e cinco dias, devido a complicações vasculares
decorrentes de um quadro não controlado de diabetes. Sua morte veio a acontecer
exatos três meses e doze dias depois da sua primeira internação no hospital da cidade, dia
exato de sua entrada no estado de delírio alternado com momentos de consciência.
Antes de morrer, nos raros momentos de plena consciência, chamou vários conhecidos, de tempos antigos e recentes, para
relembrar e reavivar alguns dos fatos de sua vida. Nos seus últimos dias, não
aceitou mais visitas e dizia que estava trabalhando em sua última tarefa. De fato há muito delirava. Nenhum amigo ou parente de Tenório José Cândido conseguiu descobrir, com
precisão, que tarefa era esta. A dúvida também existia, é claro, com relação a
sua realização. Mas talvez tudo fosse delírio de um homem já afetado pela
doença. Certeza mesmo não há e o que quer que estivesse fazendo Tenório José
levou consigo no momento de sua morte.