sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Sobre "ser"


São poucos aqueles que são. Ser: palavra complicada de colocar em qualquer linha torta, por mais inocente e despretensioso que seja o texto. O que é “ser”? Seria o verbo? Seria o substantivo? Aqui pretendo atribuir à essa palavra um sentido mais amplo. Vejamos, pois, qual seria esse significado que vai além. Apenas quero deixar bem claro que estou fugindo de qualquer pretensão de cunho filosófico, ou melhor, estou abdicando (por falta de conhecimento sobre o assunto) de colocar essas palavras dentro de alguma discussão filosófica histórica. É evidente que a metafísica, com seus tratados sobre o ser, já o fez com muito mais critério, rigor e fundamento do que eu. Digo isso apenas para evitar qualquer crítica que vá nesse sentido, vinda de uma discussão da qual este texto não pertence, não pretende entrar e da qual eu me esquivo. Então voltemos à palavra “ser”.


Gostaria de acreditar que “ser” não se refere apenas a simples substantivos (sejam eles comuns ou próprios). “Os seres que habitam esse mundo”, “o ser humano” ou “O ser supremo”. São definições válidas para o uso cotidiano, para uma compreensão mútua que não só é oriunda, mas que necessita de uma ausência de reflexão criteriosa (afinal, se fossemos, a todo momento, parar para pensar o que são, de fato, as coisas, ou se as coisas existem, ou se temos possibilidade de conhecer as coisas, se estivéssemos sempre com esses pensamentos na cabeça, a atitude natural não existiria e seríamos incapazes de viver na realidade[1] que se nos apresenta), mas ela me parece insuficiente. Também não me parece suficiente colocar tal palavra como um verbo, como ligação de um sujeito a um predicado. “Vai ser gauche na vida”, “Lacerda é corrupto” ou “Dilma é mentirosa” também são frases que, a meu ver, não dão conta de abraçar as possibilidades da palavra “ser”.



Se estas definições acima não dão conta, por que não as unir? Explico-me. “Ser” é uma coisa existente, que “é”, mas que é de acordo com um critério, um crivo. O “ser” não pode ser si mesmo se não agir de uma maneira que o caracterize. “Ser”, então, refere-se a um conjunto de ações, posicionamentos e movimentos que caracterizam uma criatura existente não simplesmente por ela existir, nem por efetuar qualquer ação de modo arbitrário, mas agir segundo um critério pessoal. Isso é “ser”. Verbo e substantivo. Verbo unido, indissociavelmente unido, ao substantivo (ou vice-versa). Uma separação entre estas duas características de “ser” implica, necessariamente, em não ser.



Não adianta falar de um conceito se ele não tiver implicações práticas. O que decorre de uma separação entre o "ser" enquanto verbo e enquanto substantivo? Decorre uma pessoa que não “é”, uma sujeito que não “é” ele mesmo. Pode até “ser” no âmbito da reatividade, da superficialidade, mas não pode “ser” no sentido mais amplo e pleno da palavra. Essas pessoas digladiam desesperadamente contra si. Desesperadamente. Lutam contra aquilo que é o critério mais pessoal da sua existência. Sabem que não é trabalhando daquele jeito que elas mais se realizam, mas o fazem porque o chefe manda, ou porque esse é o jeito considerado correto, enquanto sua pessoa desaparece. Sabem que precisam daquela pessoa, mas não admitem (ou se admitem, por orgulho, não vão atrás). Sabem que estão felizes vendo desenhos animados, ou jogando jogos, ou comendo algodão doce, ou indo ao parque de diversões, mas deixam de fazê-lo porque “isso não é coisa de gente adulta e madura” ou porque “precisam crescer”. Daí só pode vir a angústia. Vem também a conhecida “crise existencial”, que não é quando a pessoa não sabe o que é ou o que quer, mas vem de um movimento contínuo de recusa de si mesmo que não pode levar a outra coisa que não seja a sensação de não “ser”: de tão afastada de si (e, consequentemente, incapaz de se reconhecer em qualquer coisa justamente por estar distante da fonte original), a pessoa se vê desamparada e em desespero, sem saber quem ou o que é. Repito e repetirei quantas vezes forem necessárias: se não agir conforme um critério pessoal a pessoa não pode ser quem ela é e, por isso, não pode “ser”. O que somos está em nós, e basta um olhar atento para a nossa relação com a realidade para evidenciar o nosso “ser” pleno no mundo. Não separar substantivo do verbo: condição necessária para afirmar o que “somos” e afirmar que “somos”.

“Sou” quando sou eu mesmo. Se não, é não “ser”.






[1] Também não quero entrar no mérito da discussão sobre o que é realidade, o que é a realidade ou se a realidade existe.