Sonoros retumbes timpânicos. Batuque, batida e bedelho. Toldo circense erguido para que ficássemos protegidos do intenso sol. Ainda assim, calor. O chão duro para repouso sentado avisava quando a posição se delongava e, antes inquietos, os meus olhos se fixavam nela. Quando ela iniciou, chão duro e calor, nada disso incomodou mais. Era sonho, beleza, harmonia, inspiração, doação. Assim, as notas, batidas e batuques se integravam e compunham a atmosfera, fundindo-se à terra e aos corações dos ali presentes. Uma moça, aderindo ao sonoro convite do lugar, dançava sua música interior que vibrava em consonância com a música que educada e calorosamente preenchia o ambiente. Invasão delicada, permitida e ansiada. A criança, mais afeita às realidades intrínsecas do ser, com sua cálida tendência a aderir à sabedoria, à flor, à música e à poesia, não podia deixar de se maravilhar com a beleza e a verdade transmutadas
quarta-feira, 18 de setembro de 2013
O som do coração
Sonoros retumbes timpânicos. Batuque, batida e bedelho. Toldo circense erguido para que ficássemos protegidos do intenso sol. Ainda assim, calor. O chão duro para repouso sentado avisava quando a posição se delongava e, antes inquietos, os meus olhos se fixavam nela. Quando ela iniciou, chão duro e calor, nada disso incomodou mais. Era sonho, beleza, harmonia, inspiração, doação. Assim, as notas, batidas e batuques se integravam e compunham a atmosfera, fundindo-se à terra e aos corações dos ali presentes. Uma moça, aderindo ao sonoro convite do lugar, dançava sua música interior que vibrava em consonância com a música que educada e calorosamente preenchia o ambiente. Invasão delicada, permitida e ansiada. A criança, mais afeita às realidades intrínsecas do ser, com sua cálida tendência a aderir à sabedoria, à flor, à música e à poesia, não podia deixar de se maravilhar com a beleza e a verdade transmutadas
domingo, 23 de junho de 2013
Arevamirp ed oicóniuqe?
Esses dias que vivo são marcados
pela dúvida, de forma que até mesmo a definição da estação do ano na qual
estamos se torna objeto de difícil apreciação. O calendário me aponta,
estranhamente, o início do inverno. Estariam os astros a zombar de nós e da
nossa pequenez? Nossa ferramenta de orientação temporal me parece, hoje e
agora, zombeteira. Dá vontade de rasgá-la. Dá vontade de xingar os astros e
todos esses movimentos cósmicos, que, obedecendo às leis do universo, passamos
a compreender. Deveria eu, antes de ir à manifestação, ter olhado o calendário
e acreditado nos astros?
Contrariando a todos esses astros,
algumas pessoas dizem que é primavera. Não digo que estão errados. Eu via, no
meio da manifestação, à minha frente, um mar de gente até onde a vista
alcançava. Às minhas costas, a mesma coisa. Minha visão perdera o alcance ou o
mar de gente e a magnitude do movimento era realmente maior do que os limites
perceptivos do homem? Todos avançavam, da vanguarda à retaguarda. Como eu não
estava numa guerra – mas sim numa primavera que evidenciava, acima das cabeças
dos milhares de manifestantes, um belo horizonte – esses termos me parecem,
nesse momento, descabidos. Então cabe aqui uma reformulação: do início ao fim,
as pessoas avançavam e, nos cartazes, bandeiras, tintas nos rostos, gestos,
gritos e brados, instrumentos musicais, em todas essas coisas, carregavam e
expressavam não apenas sua insatisfação diante de um sistema político – e talvez
econômico – que não atende às pessoas e seus anseios de justiça, de bem, de
amor, de verdade e de beleza: carregavam e expressavam, em cada centímetro
avançado, a esperança de construir ou de encontrar um lugar melhor, mais justo,
mas honesto e mais bonito.
Infelizmente a primavera não é
feita apenas de flores. Algumas árvores e plantas, indo contra sua própria
natureza, não oferecem flores ao mundo. Pode ser pela terra árida, pelo terreno
agreste, pelo solo sem nutrientes ou por algum tipo de veneno, não se sabe bem
ao certo. Mas elas não florescem. A existência perversa da planta, nesses
casos, não dá conta de permitir que os botões metamorfoseiem-se, a partir do
seu processo de abertura essencialmente constituinte, em flor. A árvore sem
flor, reconhecendo a beleza daquilo que poderia ter se tornado, vira
erva-daninha e, no meio da primavera, consome tanto a potência e a promessa dos
botões quanto a beleza e vitalidade das flores que já desabrocharam. E a
primavera, com esse tipo de planta, vai ficando menos colorida, mais fria e
feia. Por causa dessas ervas-daninhas, aquele movimento inicial – que vem das
exigências das pessoas pela justiça, pelo bem, pela verdade e pela beleza – se
transforma em caos. Assim, a primavera esfria. Surge uma estação fria e caótica
e triste. Um novo tempo em que, com seu vento gélido, despetala ou sopra para
longe as jovens e belas flores de raízes ainda curtas e deixa apenas as flores
mais velhas e mais enraizadas que, por serem poucas, não resistem à nocividade
das invejosas e enraizadas ervas que se alimentam do solo fertilizado pela vida
que ali antes se encontrava. Ao contrário do que predizem os astros, chega,
depois da primavera, o inverno. Infiltrados e disfarçados de manifestantes
pacíficos, jogam bombas caseiras na polícia que, apesar de poder revidar com
menos truculência e com mais eficiência, não o faz. Desarticulam o movimento
incipiente e que, justamente por engatinhar, ainda não sabe muito bem como
lidar com esse tipo de gente. O cenário pacífico dá lugar a um ambiente de
guerra e, nesse momento, termos como vanguarda e retaguarda não podem mais ser
considerados descabidos. Contrariando os astros e sua inerente ordem universal,
à primavera sucedeu o inverno.
No meio da bagunça, o alcance da
minha visão realmente se encontrava reduzido: não sabia bem o que acontecia e
podia cair na armadilha de aderir a falso e manhoso partido. Reconhecendo os
limites da minha visão, resolvi não tomar partido, não endossar os xingamentos
direcionados à polícia e a ficar apenas com as reivindicações legítimas – e,
infelizmente, genéricas – por melhor educação e saúde e pelo fim da corrupção e
da violência. Dentro das minhas imensas limitações, não podia fazer muito. Contudo,
timidamente, o alcance das vistas vai se ampliando e algumas coisas que não
faziam sentido passam a fazer. O relato do que os outros viveram, ao mesmo
tempo em que nos confunde, pode esclarecer. A confusão de depoimentos e
versões, de opiniões e relatos, esse caráter obnubilado do que acontece, por si
mesmo, não deixa de esclarecer algumas coisas e de dizer do que acontece nesses
dias de hoje. Diz que a grande maioria não sabe o que acontece; diz que temos
que agir com cautela antes de nos afiliarmos a qualquer ideologia ou partido ou
reivindicação; diz da necessidade de visão crítica acerca do nosso tempo; diz
da necessidade de educação para nós, brasileiros, que ainda engatinhamos nesse
quesito; diz, por fim, que o critério para reconhecer a verdade está em nós e
que a dúvida pode decorrer de uma atitude de não atentar para a própria
experiência.
Quero acreditar que os astros e
seus movimentos previsíveis e calculáveis não determinam o mundo dos homens e
seus destinos. Quero acreditar que as flores, dançando e bailando ao vento,
voltarão a repousar sob a terra consumida pelo caos e pela tristeza e trarão,
novamente, vida, promessa, agência e esperança. Enfim, quero acreditar no
equinócio de primavera.
Rafael de Paula
quarta-feira, 17 de abril de 2013
Folhas secas e o roubo do amanhã
“E depois de tudo, céu e terra aí estão, como
se nada tivesse acontecido. A vida e as ações do homem têm o peso de uma folha
seca numa ventania”. Li esse trecho, certa vez, em um livrão grande e grosso
que eu ganhei dos meus pais na época em que eles acreditavam que eu era um
leitor fervoroso e que eu ia ser escritor, tudo isso simplesmente por não terem
referência alguma da leitura e escrita dos outros jovens da minha idade. Apesar
de não ter tanta certeza da fidedignidade da transcrição deste trecho, estou
certo de que o significado que ficou para mim foi esse e que ele foi meu objeto
de reflexão durante vários anos - não constante, obviamente. Assim, pouco importa que a frase realmente não seja
essa: a frase que tenho na minha cabeça me impressionou. Acho-a de uma estética privilegiada e causadora de
um impacto imediato. O autor jogou na minha cara que minha vida não tem peso
nenhum; jogou-me na cara que tudo o que fiz, faço e farei não vai valer
absolutamente nada. Ainda assim, achava-a bonita, porque me fazia lembrar a
minha pequenez e não deixava que a humildade fugisse para longe e me
abandonasse por completo. Com o tempo, fui levantando hipóteses de que nossas
ações têm peso sim, afinal, como fizeram algumas pessoas para registrar seu
nome nos livros de história? Para o bem ou para o mal, polêmicas ou não, certas
ou erradas, as pessoas fizeram coisas que marcaram a humanidade, que mudaram o
nosso mundo, e estas estão imortalizadas nas páginas da nossa história. Então,
mudei o foco da questão para mim: qual o peso das minhas ações no lugar onde eu vivo? Resolvi, inspirado por alguns filmes e desenhos que assistia, que
se eu pudesse proteger quem estivesse ao meu redor, respeitando as minhas
capacidades e possibilidades, eu já estaria fazendo muito. Singela filosofia de vida que havia me tocado verdadeiramente. Eu, na
minha pequenez, poderia fazer alguma diferença nas vidas de alguns. O tempo
passou e fui percebendo o desafio que era estar, de fato, junto do outro e ser,
efetivamente, uma presença nas vidas das pessoas, ainda que muito poucas. Eu, que, reconhecendo minhas limitações, havia reduzido o horizonte para tornar mais palpável minha tarefa, me frustrei quando
percebi que ainda assim a minha dificuldade era imensa. Se não posso ser
presença em casa, se não posso ajudar em um contexto específico, se não posso
proteger muitas das pessoas que estão ao meu lado, então não posso fazer nada.
Por fim, quando tomei consciência das minhas limitações e aceitei as regras do
jogo, a angústia saiu de mim: não posso estar em dois lugares ao mesmo tempo,
não posso cuidar de todos ao mesmo tempo, por vezes não sou capaz de cuidar de
nenhuma pessoa sequer e, se não consigo cuidar de mim, sou absolutamente
incapaz de cuidar do outro. A palavra cuidar é, para mim, hoje, deveras
importante. Na universidade, redescobri o valor e a força desta palavra e parei
de proferi-la aleatoriamente, em qualquer contexto ou situação, de forma casual
e descompromissada. Aprendi que ela é uma palavra preciosa porque aprendi o
valor e a importância de cuidar de alguém, ainda que seja uma única pessoa.
Redescobri minha antiga filosofia de vida, aquela mesmo de cuidar e proteger
quem estiver ao meu redor de acordo com minhas possibilidades. Redescobri a
força deste ato e a potência de uma pessoa que é uma presença verdadeira e
preocupada e atenta. É só reconhecendo as minhas limitações que eu consigo
estar disponível para o outro.
Contudo, de vez em quando, alguns
acontecimentos abalam nossas bases. E quando a vida joga na sua cara que você é
fraco mesmo, que você não tem controle sobre nada? Sabe aquelas coisas que
parecem estuprar a vida? Elas acontecem. Sabe quando você mata uma aula
para fazer algo que, caso você tivesse se organizado melhor, você não
precisaria fazê-lo naquele horário, depois escuta dos amigos que a aula foi
bacana, foi bonita, que o professor estava com uma cara muito boa apesar dos
sérios problemas de saúde e, no dia seguinte, você descobre que o professor
morreu? Então, foi bem por aí. Mal o conhecia. O que me abala é o roubo do
amanhã. Deixei para ir à aula semana que vem, mas a “semana que vem” não existe
mais. Não temos controle sobre nada, ou quase nada, e nesses momentos nos damos
conta que realmente somos folhas secas na ventania. Dizem-me: como poderia
saber que ele faleceria? Digo-lhes: não poderia saber e, mais ainda, não consigo
viver cada momento como se fosse o último. O mais perto que posso chegar
disso é reconhecer os momentos importantes e tentar agarrá-los no presente. Hoje
a vida me deu uma cutucada e a realidade se mostrou inexorável. Foi um aviso da
realidade para eu cuidar e para eu tomar o cuidado de reconhecer, hoje e aqui,
o que me é importante antes que isso me seja roubado. Que pelo menos me seja
roubado um futuro de um presente que eu vivi, não o futuro de um presente que
eu deixei de viver e que reconheci tardiamente. O amanhã nos será roubado, invariavelmente, porque a
realidade é sempre maior do que nós e está sempre fora do nosso controle. A
grande questão é aprender a ser folha seca: temos que saber reconhecer e viver o que reconhecemos como importante e, assim, dançar nosso próprio ritmo
dentro da ventania que inevitavelmente nos carrega. Porque a tempestade chega e, de forma implacável, rouba
de nós o amanhã. Para sempre.
sábado, 16 de fevereiro de 2013
Apologia ao amor
Fiquei
chocado quando, na quarta feira de cinzas, vi uma foto no Facebook , tirada no
carnaval de Diamantina, de uma faixa com os seguintes caracteres: “Foda-se o
amor”. Imediatamente fui verificar o ibope daquilo e vi um número assombroso de
pessoas “curtindo” e, em comentários, concordando com os dizeres da faixa. Eu
pensei: “Que coisa doida!”. “Foda-se o amor”. Essa frase criou raízes no meu pensamento nesses dias, martelando na minha cabeça e confundindo o tico e
o teco, que não tem se entendido muito bem e já não andam lá muito bons das pernas nesses últimos tempos.
Então,
o que seria esse amor que essas pessoas estão mandando às favas? Não posso acreditar que
estão dispensando o amor do gesto amigo, da palavra de consolo, do abraço forte
e terno, do beijo no rosto ou do beijo apaixonado. Acaso estão eles a renegar o
amor que enxuga as lágrimas, que oferece o ombro, que deixa a gente com
saudade, que se entende com um olhar, que se entende com mil palavras, que dá
aquele sorriso bonito e largo ou até aquele meio tímido e desajeitado justamente por possuir tanto fogo e ardor? Abdicam daquele que dá flor, que dá presente, que dá carta, que
dá bilhete, que dá poesia, que dá cor? Não faz sentido descartar isso. Não faz. Eles
renegam outro amor, ou outra parte desse mesmo amor.
Renato
Russo, certa vez, disse que “se o amor é verdadeiro não existe sofrimento”.
Poeta, letrista, brilhante. Mas este é um dos raros momentos em que discordo de
alguma frase deste grande gênio da música brasileira: amor de verdade faz
sofrer sim, faz a gente ficar triste, faz a gente chorar, faz a gente se
desiludir, faz a gente não querer sair de casa, faz a gente não querer mais
amar por algum tempo. É ferida que dói e se sente intensamente. Vinícius, o
poeta, juntamente com seu violão, já dizia que o amor “é o espinho que não se
vê em cada flor; é a vida quando chega sangrando aberta em pétalas de amor”.
Suspeito que, quando escravo da alegria, Toquinho disse que o amor “me dá medo
e vem me encorajar/ fatalmente me fará sofrer”. Cartola, de peito vazio,
disfarçou e chorou por amor e disse que não se aprende a sofrer no amor, mas o sofrimento existe. Adoniran Barbosa deu bom dia à tristeza e pediu
seu ombro para chorar, para chorar de tristeza de amar.
Essa
gente triste que mandou o amor àquele lugar, mandou apenas uma parte do amor
embora: a parte do amor que faz sofrer, do amor que faz a gente ficar triste e que faz a gente chorar.
Ao pegarem a bela flor, assustam-se com o espinho que nela não se via e assim
desistem de amar. Jogam fora a flor por causa do espinho antes invisível.
Como não tem jeito de tirar só a parte ruim, jogam fora o amor por
inteiro. O que fica é o amor de ilusão, o amor dos romances românticos, o amor que na
verdade não é o amor inteiro e, por isso, não é amor. Tudo que deixa de ser
inteiro, deixa de ser. Uma vez me disseram assim: “a gente tende a evitar o
sofrimento, mas talvez eu tenha que sofrer mesmo não é?”. Concordei veementemente, apesar de meus gestos não terem expressado, naquela ocasião, o quanto aquilo me parecia importante. Ao afastarem a dor, o
sofrimento, inevitavelmente afastam o amor.
O que eu vejo é gente que, de tanto
querer ser amada, desistiu do amor. Querem o amor com tanta força, com tanta
vontade, com tanta paixão, que se assustam com o espinho. Essa gente que diz
“Foda-se o amor”, na verdade, são aqueles que mais querem amar. É a gente que muito quer o amor, carnavalesca e desesperadamente.
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