domingo, 23 de junho de 2013

Arevamirp ed oicóniuqe?


Esses dias que vivo são marcados pela dúvida, de forma que até mesmo a definição da estação do ano na qual estamos se torna objeto de difícil apreciação. O calendário me aponta, estranhamente, o início do inverno. Estariam os astros a zombar de nós e da nossa pequenez? Nossa ferramenta de orientação temporal me parece, hoje e agora, zombeteira. Dá vontade de rasgá-la. Dá vontade de xingar os astros e todos esses movimentos cósmicos, que, obedecendo às leis do universo, passamos a compreender. Deveria eu, antes de ir à manifestação, ter olhado o calendário e acreditado nos astros?

Contrariando a todos esses astros, algumas pessoas dizem que é primavera. Não digo que estão errados. Eu via, no meio da manifestação, à minha frente, um mar de gente até onde a vista alcançava. Às minhas costas, a mesma coisa. Minha visão perdera o alcance ou o mar de gente e a magnitude do movimento era realmente maior do que os limites perceptivos do homem? Todos avançavam, da vanguarda à retaguarda. Como eu não estava numa guerra – mas sim numa primavera que evidenciava, acima das cabeças dos milhares de manifestantes, um belo horizonte – esses termos me parecem, nesse momento, descabidos. Então cabe aqui uma reformulação: do início ao fim, as pessoas avançavam e, nos cartazes, bandeiras, tintas nos rostos, gestos, gritos e brados, instrumentos musicais, em todas essas coisas, carregavam e expressavam não apenas sua insatisfação diante de um sistema político – e talvez econômico – que não atende às pessoas e seus anseios de justiça, de bem, de amor, de verdade e de beleza: carregavam e expressavam, em cada centímetro avançado, a esperança de construir ou de encontrar um lugar melhor, mais justo, mas honesto e mais bonito.

Infelizmente a primavera não é feita apenas de flores. Algumas árvores e plantas, indo contra sua própria natureza, não oferecem flores ao mundo. Pode ser pela terra árida, pelo terreno agreste, pelo solo sem nutrientes ou por algum tipo de veneno, não se sabe bem ao certo. Mas elas não florescem. A existência perversa da planta, nesses casos, não dá conta de permitir que os botões metamorfoseiem-se, a partir do seu processo de abertura essencialmente constituinte, em flor. A árvore sem flor, reconhecendo a beleza daquilo que poderia ter se tornado, vira erva-daninha e, no meio da primavera, consome tanto a potência e a promessa dos botões quanto a beleza e vitalidade das flores que já desabrocharam. E a primavera, com esse tipo de planta, vai ficando menos colorida, mais fria e feia. Por causa dessas ervas-daninhas, aquele movimento inicial – que vem das exigências das pessoas pela justiça, pelo bem, pela verdade e pela beleza – se transforma em caos. Assim, a primavera esfria. Surge uma estação fria e caótica e triste. Um novo tempo em que, com seu vento gélido, despetala ou sopra para longe as jovens e belas flores de raízes ainda curtas e deixa apenas as flores mais velhas e mais enraizadas que, por serem poucas, não resistem à nocividade das invejosas e enraizadas ervas que se alimentam do solo fertilizado pela vida que ali antes se encontrava. Ao contrário do que predizem os astros, chega, depois da primavera, o inverno. Infiltrados e disfarçados de manifestantes pacíficos, jogam bombas caseiras na polícia que, apesar de poder revidar com menos truculência e com mais eficiência, não o faz. Desarticulam o movimento incipiente e que, justamente por engatinhar, ainda não sabe muito bem como lidar com esse tipo de gente. O cenário pacífico dá lugar a um ambiente de guerra e, nesse momento, termos como vanguarda e retaguarda não podem mais ser considerados descabidos. Contrariando os astros e sua inerente ordem universal, à primavera sucedeu o inverno.

No meio da bagunça, o alcance da minha visão realmente se encontrava reduzido: não sabia bem o que acontecia e podia cair na armadilha de aderir a falso e manhoso partido. Reconhecendo os limites da minha visão, resolvi não tomar partido, não endossar os xingamentos direcionados à polícia e a ficar apenas com as reivindicações legítimas – e, infelizmente, genéricas – por melhor educação e saúde e pelo fim da corrupção e da violência. Dentro das minhas imensas limitações, não podia fazer muito. Contudo, timidamente, o alcance das vistas vai se ampliando e algumas coisas que não faziam sentido passam a fazer. O relato do que os outros viveram, ao mesmo tempo em que nos confunde, pode esclarecer. A confusão de depoimentos e versões, de opiniões e relatos, esse caráter obnubilado do que acontece, por si mesmo, não deixa de esclarecer algumas coisas e de dizer do que acontece nesses dias de hoje. Diz que a grande maioria não sabe o que acontece; diz que temos que agir com cautela antes de nos afiliarmos a qualquer ideologia ou partido ou reivindicação; diz da necessidade de visão crítica acerca do nosso tempo; diz da necessidade de educação para nós, brasileiros, que ainda engatinhamos nesse quesito; diz, por fim, que o critério para reconhecer a verdade está em nós e que a dúvida pode decorrer de uma atitude de não atentar para a própria experiência.

Quero acreditar que os astros e seus movimentos previsíveis e calculáveis não determinam o mundo dos homens e seus destinos. Quero acreditar que as flores, dançando e bailando ao vento, voltarão a repousar sob a terra consumida pelo caos e pela tristeza e trarão, novamente, vida, promessa, agência e esperança. Enfim, quero acreditar no equinócio de primavera.


Rafael de Paula