quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Ludovico, Clarice e o amanhã


Ludovico tocava como se não houvesse amanhã. As notas ecoavam de um modo potente, inequívoco, de uma precisão rara. Os transeuntes estacionavam debaixo da marquise daquele antigo prédio, que remontava um período já perdido no tempo. No último andar, notas e mais notas. Harmonia ressoava e, de um modo misterioso, mas concreto, atingia os céus. A cafeteira e a xícara, postas na pequena mesa ao lado do piano, vibravam ao ritmo da música. Ludovico devaneava.

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A festa transcorria de um modo sereno, pacato demais para uma comemoração daquele tamanho. Os mascarados podiam ser reconhecidos unicamente pela sua voz, estatura e pelos seus modos característicos de gesticular, de andar, de fumar. Ludovico pouco prestava atenção no público, apesar das pessoas de eminência social, política ou artística. Isso porque todo o seu ser estava voltado para Clarice, a jovem dama que arrebatava a todos com a sua solene e bela presença. De fato eram poucos os homens que ignoravam aquela mulher, de forma que ela era, de um modo discreto, o centro das atenções.
A música do piano revelava um coração triste. A canção não era triste por si mesma, mas pela sua densidade sensível. Compenetrado, o talentoso músico parecia dar tudo de si no tocar de teclas. A força da sua presença musical ditava o ritmo do baile, o que passou a incomodar alguns. Afinal de contas, era uma festa, não uma marcha fúnebre. Pausa na música. Alívio.

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O sol entrava por uma nesga de luz na escuridão do quarto. Ludovico olhava para o corpo daquela mulher percebendo detalhes antes não vistos. Ela dormia de um modo especial e particularmente belo. A boca semiaberta, o seio suavemente caído para o lado direito de seu corpo, os pés envoltos nos seus. Os restos da ceia da noite anterior permaneciam na mesa. Uma garrafa de vinho tombada na mesa, cacos de uma taça espalhados pelo chão, a cadeira tombada e a mesa visivelmente fora de seu lugar. Parecia que a casa havia sido assolada por um tornado. De certa forma tal impressão não era equívoca.

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Os passeios no parque costumavam ser tristes. Traziam de volta lembranças sorumbáticas de uma infância que gostaria de ter sido feita esquecida. Os braços dados, de um lado a leveza e firmeza e de outro a força e a insegurança, flutuavam pelos caminhos artisticamente construídos e engenhosamente pensados. Uma estátua de Ícaro ocupava o centro da pequena praça central. Ícaro mirava os céus e, decidido e solene, preparava seu voo final. Aquela estátua, paralisada no tempo, parecia não saber o destino trágico que o esperava e ficaria eternamente ali, mirando o infinito. Ludovico pensou que alguma alma piedosa o tivesse petrificado e pensava se aquela criatura mitológica desistiria de seu grandioso anseio caso soubesse o fim. Não valia a pena conjecturar sobre tais possibilidades. Afinal, seu céu era aquele presente, era aquela presença que docemente lhe oferecia a mão. Como estava no céu, ele evitava, a todo custo, pensar na queda.


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O lugar cheirava cigarro e álcool. Escuro, sombrio e abandonado. A garrafa, posta ao alcance das mãos, não tinha um minuto sequer de repouso. A música era agressiva, de certa forma violenta. O homem das mãos que revelavam o divino havia caído no inferno. Uma foto em um porta-retratos permanecia posto em cima do piano, encarando-o gravemente. Sua música atormentada era para ela.

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Sua música não era mais suave como fora um dia. Era pesada, densa e profunda. Fazia-se insuportável aos ouvidos de alguns e despertava lágrimas nos olhos de outros. As notas carregavam amargura pelos erros do passado e aguardavam outras notas, de outra música, não que desfizessem o já feito, mas que carregassem o perdão. Clarice estava sentada na primeira fileira, séria e atenta, como sempre. Parecia dar tudo de si na escuta da canção, num esforço titânico para compreender o coração do seu amado. Era o único meio de que dispunha. Tentaria até o fim.


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O violino permanecia escorado na parede, no canto da despensa. Empoeirado e desafinado, esperava o dia em que seria novamente tocado, o dia em que abandonaria o desafino e a solidão. Clarice, algumas vezes, passava horas a fitá-lo, como se constantemente permeada por uma dúvida implacável. Ela também ansiava pelo dia em que voltaria a encarnar a música. Enquanto isso o piano continuaria soando em solidão, expiando, pouco a pouco, os pecados daquele que o tocava. Ludovico tocava na espera esperançosa de que haveria o amanhã.



segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Sobre chorar 2

Lá se vai um bom tempo que não passo por aqui. Um ano, talvez, pois a memória já encontra dificuldade para recordar certos fatos. O fato é que lá se vai muito tempo. Pergunto-me, ocasionalmente, o porquê disso, buscando insistentemente - e de um modo tipicamente meu - os “porquês” e as explicações causais de tudo. Faz-se necessário, acredito, começar do início: faltava-me inspiração. Entretanto, inspiração me parece termo de escritor que precisa produzir algo e, diante de questionamentos e críticas referentes à sua improdutividade, justifica-se pela falta de inspiração. Não tenho a obrigação de escrever e não vivo disso, então me parece errôneo justificar pela falta de inspiração. Nesse momento outro aspecto me vem à cabeça: parece-me que inspiração não é apenas uma “coisa” que se tem que nos legitima a escrever uma prosa ou uma poesia ou palavra qualquer: não posso limitar esse termo a esse uso (por mais bonito que seja). A inspiração pode se revelar em uma palavra a um amigo ou parente ou namorada; em um modo cuidadoso de arrumar o quarto; em um jeito diferente de abraçar quem quer que seja; em um jeito atencioso de brincar com uma criança; em mandar poesias e músicas a uma certa pessoa pelo simples fato de se lembrar dela; em um olhar cheio de maravilha para algo que é radicalmente belo; e – não para fechar a lista, mas apenas para pontuar algumas situações – manter firme a certeza da beleza dessa coisa misteriosa e, de certo modo, mágica, que é a vida em si mesma. Nesse ponto chego à conclusão que a inspiração eu não perdi. Percebo agora que o que me faltava era a urgência de escrever, aquele grito silencioso que vem do fundo da nossa alma e que exige, contra tudo e contra todos, a sua expressão por meio dessa dádiva que é a palavra.


Estes foram tempos em que me reencontrei com as lágrimas. Tinha me esquecido da minha capacidade de chorar e redescobri que a lágrima é forte. Forte não porque ela comove o outro (se bem que isso é um exemplo de força: a capacidade de fazer com que o outro se mova junto comigo, que ele “co-mova”), mas porque em certos momentos ela expressa um sentimento e uma experiência que palavra nenhuma é capaz de expressar de modo tão preciso e tão justo. Certas vezes estamos, de um modo inexplicável, em momentos de afinidade com as palavras, mas eu me encontrei em um momento de afinidade com a lágrima. Lembrei-me, finalmente, do gosto das minhas lágrimas; do peso delas; da capacidade transformadora que elas têm; da sua força expressiva. Hoje eu posso dizer que sou uma pessoa que chora e isso, de algum modo, dá-me a sensação de que estou mais próximo, vivencialmente falando, do humano. Hoje não é cisco e não é chuva: é choro mesmo. Da lágrima brotam infinitas palavras. Tem um pouco disso: aproximar-se do humano é se aproximar do infinito, de forma que hoje estou mais perto dele, ainda que infinitamente distante. Apesar de todas as perdas, infinitos ganhos. Ainda que menos íntimo da palavra escrita, sinto-me mais perto da palavra sentida: ganhei a lágrima sem perder a palavra. Gratidão.